domingo, 27 de março de 2011

Entrevista Sol Negro | Sopa d'Osso

Sopa d'Osso
Você nasceu em São Paulo por acaso, de pais caicoenses, cidade para onde retornou aos 3 anos. Suas primeiras lembranças e criação foram lá. Acha que isso tem influência no seu caráter? De que forma te marcou?
        
     -Por acaso nascemos?! O acaso do Caicó?! A memória mais remota que tenho é tão viva que até o som daquele momento ainda revivo, deu-se em Caicó: a cidade silenciou, meu pai fechou o caldo-de-cana, me levou no cangote pra ver o homem pisando na lua, só se ouvia o som longe com chiados e o rumorejo meio assustado do povo na rua parado vendo o televisor... de S. Paulo lembro nada não! Sou seridoense em ânimo e alma, e Caicó é mesmo o umbigo do planeta.

colagem de J. de Lima
·         Com que idade você veio para Natal? Já estava envolvido com o punk?

      -Em 1985, desde 84 já me achava punk, em Natal editei o primeiro zine: Diário Punk de Natal, como tentativa de contatar punx por ali, assim conheci a galera dita “turma de baixo”: Rodrigo Hammer, Paulo Jorge Dumaresq, DD Thrash, nenhum deles punk, mas também Rómulo (Devastação), Samir e o Gato (skatistas), esse vinha da cena punk de Fortaleza, tão antiga e com uma história semelhante à cena paulista.

·         Quando você começou a escrever poesia? Qual era o contexto da cena literária da época?

     -Natal, foi a tal cidade que me obrigou, a princípio as letras da O.R.$.A. (Ódio Radical S.A., banda da qual fui guitarrista), antes escrevia alguma coisa que a minha irmã guardava e achava interessante, mas que pra mim era nada ou quase bilhetes perdidos com memórias vagas. Natal fervia de letras e artes: Festival de artes no forte dos reis, cooperativa de artistas plásticos, o NAC-UFRN com o setor de multimídias ( J. Medeiros)... era uma festa, sextas na UFRN e todos os dias nas vernissages, praia dos artistas, cidade alta, e os sebos.

·         O Antigo e kaótico livro de Sopa d’Osso, também chamado Prolegômenos aum apokalipsin da América, foi descrito por você como um “Pentateuco engenhoso de teologia poética”. É um livro místico-religioso marcado pela experimentação linguística, que se afasta do contexto histórico-social num mergulho radical na experiência pessoal do sagrado. Como você chegou até ele? O que escreveu antes disso?

     -É só um livro de poesia... que achegou-se-me... certamente deve  ter uma história, talvez não tão poética quanto se propõe... a culpa toda é de Vico... começou depois que li a Scienza Nuova... de outra parte é resultado caótico de uma experiência niilista: quando consegui me livrar de toda crença, menos das superstições. Antes escrevi: Sol enamorado de Negra Lua (Prosopoemas), Itakwatiararana (Poemas tortográficos), Aforismos Novíssimos Atlântides,  e mais uns textos esparsos que nem lembro mais.

fotomontagem de Jorge de Lima
·         Sei que parte das experiências recriadas no livro vieram da ocorrência espontânea de “sonhos lúcidos” ou “projeções astrais”, bem como de visões e percepções extra-sensoriais que lhe aconteceram, como você equaciona o que há de ficção e realidade nas criações textuais contidas no livro?

     -Sabo não, mas penso que o niilismo teve culpa também nisso tudo... essas experiências começam justo quando consegui um estágio máximo de esvaziamento, de descrença total e de revolta contra deus e o diabo, contra a humanidade, contra tudo, anti-tudo foi meu lema, odiava realmente e cresci com esse ódio até ficar tão tranquilo com ele ou sem ele, no momento em que não tinha mais com que me preocupar começam as doideiras: projeções, hiper-sentidos (ouvia o cosmos, as esferas!...enxergava de olhos fechados... cheirava espíritos... deglutia luz) e também um tipo de cinestesia que fundia todos os sentidos numa experimentação única...chamei de Focus, é como outro sentido, talvez o décimo sentido, tem parentesco com a visão, mas é mais sutil, comecei a estuda-lo e tenho “in progress” um outro livro chamado O Prático do Focus (no futuro serei lembrado por ter sistematizado essa percepção!), uma loucura bem interessante, mas que se tornou assustadora noutro tempo... do medo disso tudo talvez tenha partido, essa a realidade: a ficção ali é real mesmo... é ficção científica.

·         Em teu livro, enxerga-se uma forte mitologia em torno do que chamas “Novíssima Atlântida” e da fraternidade branca a par de uma forte crítica ao catolicismo em nome de um cristianismo quase pagão, herético. De que modo estes temas e posicionamentos coincidem com sua visão de mundo? Você pode explicitá-los um pouco mais? Que vem a ser esta Novíssima Atlântida, algum parentesco com a Nova Jerusalém de Blake e outros místicos?

     -A revelação que trata é da minha religião, se é que tenho uma, ou do meu processo, o mitológico é invenção para descobrir o velado, lembrar que o livro é “engenhoso”,  logo é só um jogo, jogo com palavras, religião poética, nunca igreja, jamais grêmio desportivo religioso... a Atlântida é novíssima por que já houvera uma “nova”(a de Bacon!), menos que pagã é total Abraxas, não uma utopia, mais uma transtopia: “um não lugar em nossas tementes mentes”, é cristã porém humana e totalmente anti-católica-apostólica-romana como é também anti qualquer igreja, é mesmo a mesma Jerusalém fabular, é pura invenção e por isso divina. Da fraternidade branca seio não... mas que ela existe, existe!

·         Qual o teu paradigma poético? Que poetas o constituem? Como determinas seus interesses nesse sentido?

-Toda poesia viva que seja ciência, história e filosofia: Vyasa,  o PopolVuh, o Ayvú Rapytá, a oralidade perdida e aqueles de quem ninguém ouviu falar... lógico:  Dante, Blake,  o Bandarra(Trancoso), Pessoa (todas as pessoas), Sousandrade e Miguel Cirilo. Todos escolheram o meu gosto!

fotomontagem de Jorge de Lima
·         Defende ou recusa a afirmação de que a poesia está mais próxima da música e artes plásticas que da literatura?

-Já Aristóteles em sua Poética tratou, junto da poesia épica, lírica e dramática, da citarística e da aulética, logo música. A idade média também não dividia as coisas, veja-se o exemplo dos Troubadors, dos Trouveres ou dos Minnesingers e Mastersingers. Literatura no sentido de prosa é algo recente, tenha-se em conta que mesmo tratados científicos e filosóficos eram dados em verso. Curtius em Literatura Europeia e Idade Média Latina elucida bem o caso. Defendo que toda arte é poesia, minha visão parte da tal cinestesia que falei.

·         Que achas da discussão sobre função social da poesia? Concordas com Jorge de Lima que diz não devermos dar deliberadamente papéis à poesia, e, logo a seguir, afirma que “em todos os tempos, [a poesia] teve uma função social importantíssima” de “anunciar as grandes reformas universais”?
      -Se há uma função social essa deve ser educar. Como disse, a poesia pra mim tem que ensinar algo: filosofia ou ciência e mesmo religião. A poesia meramente memorialista auto-egóica não me serve, por mais bonita que se apresente.

·         Sua religiosidade tem avançado no sentido de um monismo dionisíaco, não muito evidente no Prolegômenos, no qual prevalece uma visão mais cristã, seria o início do “apokalipsin” anunciado de sua poética?

     - Minha religião não tem pra onde ir, não evolui, não se degrada, inclui o Cristo como um personagem histórico mas também como alegoria: de uma humanidade que mereça ser amada, a “una humanirmandade” que vai lentamente sendo processada e que um dia há de ser realidade... se foi um dia um panteísmo, antes ainda foi o nada, mas hoje é algo bastante simples: sem dogmas, sem hierarquias; ainda que implique uma cosmogonia: sem futuro, mesmo sendo a própria escatologia. Estaria mais próxima de um gnosticismo, varri as crendices pra substituir por conhecimento. O complicado foi coadunar minha postura anarquista com uma religiosidade: não suportaria a ideia de um deus ditador, mas o Cristo já tinha dito que somos deuses, logo resolveu-se em mim o possível conflito. 

fotomontagem de Jorge de Lima
·         Depois do Prolegômenos sua poesia caminha para a música, não? Você é compositor autodidata, com duas sinfonias escritas e uma incipiente obra de câmera. Como foi esse processo de transição da palavra para a música? Onde se inscreve sua produção musical?

     - Foi o resultado de uma crise criativa: tentava escrever um poema e não achava suficiente os sentidos das palavras... tudo terminava na só sonoridade, estava entrando numa de sonorismo a la Kurt Schwitters... Então comecei a estudar música, com o propósito de compor, de inventar sons e combinações. Fiz um curso regular: Teoria, Contraponto, Harmonia, Instrumentação, Orquestração, Composição... sempre como autodidata... por livre escolha como propunha Pierre Boulez, mas como poeta, nunca como músico... não tenho interesse em um instrumento específico e odeio solfejo. Entre 1993  e 1998 compus bastante: compunha na intenção dos músicos que conhecia e participei, sem sucesso, de concursos de nova música no Brasil... assim surgiram as duas sinfonias: Sinfonia de Poemas para orquestra de cordas; Sinfonia Abaporú para grande orquestra. O projeto envolve também a minha poesia, ou minha gnose: um ritual que por enquanto chama-se Ritus Novissimae Atlantidae e que espero concluir um dia. Defino minha música como livre: poliestilística (trânsito entre o modalismo pentatônico e o serialismo dodecafônico).  Hoje, graças ao PC, tenho evoluído para uma música que lida com o que se chama de micro-sounds (eventos na escala do milissegundo) junto às macroestruturas (nuvens de sons, ciclos, drones, ets.). Na verdade minha música é bastante complexa e um tormento para os músicos (um me disse que minha música era osso!),  por isso tenho estudado bastante a música eletrônica (PC assisted como dizem): consegui os softwares mais avançados e uma extensa bibliografia e já tenho vários ensaios, estudos e algumas composições zoando por aí. 

·        Tens uma relação muito sólida com as culturas e línguas indígenas, tendo-as estudado profundamente, a ponto de adotar certas concepções cosmogônicas e visões de mundo e especializar-se em Tupi-Guarani. Como isso se configurou em sua poesia e usos linguísticos? Como surgiu e se desenvolveu esse interesse?

- Essa história começa em Caicó... alguém ofereceu um curso de esperanto (foi o meu amigo Yale Clecino!), na época eu vivia ligado num rádio de ondas curtas, ouvindo o mundo, toda aquela idiossincrasia da diversidade, as línguas, as culturas... sim: as músicas... já navegava em outras webs; então me veio a curiosidade: qual era a do tupi ? Por incrível sincronia encontrei na biblioteca pública de Caicó um dicionário do tupi antigo... quando me vem o Livro, tempos depois, senti a força que teria minha escrita se incorporasse aqueles elementos, daquela história que nos fora apagada: a existência de uma literatura, de uma poesia, plasmada naquela língua, o nosso classicismo. Quis realmente saber o que era, estudei muito, e, sempre a sincronia, os livros que precisava me apareciam. Acho que hoje estou pronto para escrever um livro totalmente americano, do novo mundo, ou de um novo... será neo-oriental, baseado no mundo mítico e no saber tupi, os prolegómenos estão prontos, o Livro ferve de estruturalismos irracionais, pedindo para ser escrito... já dei um nome, será: Guajupiá Papéra (O Livro do Guajupiá).
 [Natal/RN, março de 2011]

Sopa d’Osso (Haroldo José de Brito Silva, RN/Brasil, 1967). Contato: sopadosso@hotmail.com

5 comentários:

  1. Sopa é show. Fiquei lendo e pensando em Miguel Cirilo até ler o nome dele citado por Sopa. Caicó sempre caicó, sertão sempre rico e fecundo dentro e fora da gente.

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  2. parabéns pelo excelente trabalho, sou o poeta e escritor linosapo e compactuo com vcs essa tristeza da dificuldade de ser poeta e escritor no Brasil. messmo assim, como todos seguimos adiante com nossa arte.

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  3. Sopa é supra sumo da arte, cortante e marcante!!

    Geraldo Carvalho

    Brasília, 12/07/2013

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