sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Agulha - Revista de Cultura

Já está no ar a primeira edição da Agulha Revista de Cultura (fase II), editada por 
Floriano Martins e Márcio Simões.


terça-feira, 17 de janeiro de 2012

A voz de Robert Desnos & As profundezas da noite


A VOZ DE ROBERT DESNOS

Tão semelhante à flor e à corrente de ar
Ao curso d’água às sombras passageiras
Ao sorriso entrevisto essa famosa noite à meia-noite
Tão semelhante a tudo à felicidade à tristeza
É a meia-noite passada que levanta seu dorso nu acima das
Torres e dos álamos
Chamo até a mim aqueles perdidos nos campos
Os velhos cadáveres os jovens carvalhos cortados
Os retalhos de tecido que apodrecem sobre a terra e o linho
Que seca nos arredores das fazendas
Chamo até a mim os tornados e os furacões
As tempestades os tufões os ciclones
As ressacas do mar
Os tremores de terra
Chamo até a mim a fumaça dos vulcões e a dos cigarros
Os círculos de fumaça dos cigarros de luxo
Chamo até a mim os amores e os amantes
Chamo até a mim os  vivos e os mortos
Chamo os coveiros chamo os assassinos
Chamo os carrascos  chamo os pilotos os pedreiros e
os arquitetos
os assassinos
chamo a carne
chamo aquela que amo
chamo aquela que amo
chamo aquela que amo
a meia-noite triunfante abre suas asas de cetim e se põe
Sobre minha cama
As torres e os álamos se dobram ao meu desejo
Aquelas desabam aqueles se envergam
Os perdidos no campo se reencontram ao me achar
Os velhos cadáveres ressuscitam por minha voz
Os jovens carvalhos cortados se cobrem de verdor
Os retalhos de tecido que apodrecem na terra e sobre a terra estalam à
   minha voz como o estandarte da revolta
o linho que seca nos arredores das fazendas veste adoráveis mulheres que
   eu não adoro que vêm a mim obedecem à minha voz e me adoram
os tornados giram em minha boca
os furacões enrubescem se é possível meus lábios
as tempestades murmuram aos meus pés
os tufões se é possível me pintam
recebo os beijos de embriaguez dos ciclones
as ressacas do mar vêm morrer aos meus pés
os tremores de terra não me abalam mas fazem tudo desabar à
   minha ordem
a fumaça dos vulcões me veste com seus vapores
e a dos cigarros me perfuma
e os círculos de fumaça dos cigarros me coroam
os amores e o amor há  tanto perseguidos se refugiam em mim
os amantes escutam  minha voz
os vivos e os mortos se submetem e me saúdam os primeiros
   friamente os segundos familiarmente
os coveiros abandonam os túmulos arduamente cavados e declaram que
   apenas eu posso comandar seus noturnos trabalhos
os assassinos me saúdam
os carrascos invocam a revolução
invocam  minha voz
invocam meu nome
os pilotos se guiam sobre meus olhos
os pedreiros sentem vertigem ao me escutar
os arquitetos partem para o deserto
os assassinos me benzem
a carne palpita a meu apelo
aquela que amo não me escuta
aquela que amo não me ouve
aquela que amo não me responde
(14-12-1926)


A seguir, o Cap. II de La liberté ou l’amour! (A liberdade ou o amor):

AS PROFUNDEZAS DA NOITE

Quando eu chegava na rua, as folhas das árvores caiam. A escadaria por trás de mim não era mais que um firmamento semeado de estrelas entre as quais eu distinguia nitidamente a impressão dos passos de tal mulher cujos saltos Louis XV haviam, durante muito tempo, martelado o macadame das áleas onde corriam os camaleões do deserto, frágeis animais domesticados por mim, depois recolhidos aos meus aposentos onde eles entraram em causa comum com meu sono. Os saltos Louis XV os seguiram. Foi, eu o asseguro, um período surpreendente minha vida, aquele em que cada minuto noturno marcava com uma impressão nova a alcatifa de meu aposento: marca estranha e que às vezes me dava arrepios. Quantas vezes, em tempos de trovões ou de lua cheia, levantei-me para contemplá-los à luz fraca de um fogo de madeira, à luz fraca de um fósforo ou à luz fraca de um vaga-lume, essas lembranças de mulheres que vinham até à minha cama, totalmente nuas à exceção das meias e dos sapatos de saltos altos conservados em respeito ao meu desejo, e mais insólitas que uma sombrinha encontrada em pleno Pacífico por um paquete. Saltos maravilhosos contra os quais eu arranhava meus pés, saltos! sobre qual estrada vocês ressoam e nunca mais voltarei a vê-los? Minha porta, então, estava escancarada sobre o mistério, mas este aqui entrou fechando-a por trás dele e de agora em diante escuto, sem dizer uma palavra, uma bateção de pés imensa, a de uma multidão de mulheres nuas sitiando cercando o buraco de minha fechadura. A multitude de seus saltos Louis XV faz um barulho comparável ao fogo de madeira na fornalha, aos campos de trigos maduros, aos relógios nos quartos desertos à noite, a uma respiração estranha ao lado do rosto sobre o mesmo travesseiro.
Entretanto, embrenhei-me na rua das Pirâmides. O vento trazia folhas arrancadas das árvores das Tuileries e estas folhas caíam com um ruído macio. Eram luvas; luvas de todos os tipos, luvas de pele, luvas da Suécia, luvas de fios longos. Diante do joalheiro está uma mulher que tira sua luvas para experimentar um anel e para ter a mão beijada pelo Corsário Soluço, é uma cantora, no fundo de uma teatro agitado, vindo com eflúvios de guilhotina e gritos de Revolução, é o pouco de uma mão que podemos ver no nível dos botões. De vez em quando, mais pesadamente que um meteoro em fim de curso, caía uma luva de boxe. A multidão pisava nesses mementos de beijos e de abraços sem lhes prestar a deferente atenção que elas solicitavam. Só eu evitava matá-los. Às vezes até mesmo recolhia um deles. Com um forte abraço doce, ele me agradecia. Eu o sentia tremer no bolso da minha calça. Assim sua senhora deve ter tido que tremer no instante fugitivo do amor. Eu caminhava.
Recuando em meus passos e margeando as arcadas da rua de Rivoli vi enfim Louise Lâmina caminhar diante de mim.
O vento soprava sobre a cidade. Os cartazes do Bebê Cadum chamavam os emissários da tempestade e sob sua guarda a cidade inteira tinha convulsões.
Foram de início duas luvas que se abraçaram em um aperto de invisíveis mãos e cuja sombra por muito tempo dançou diante de mim.
Diante de mim? Não, era Louise Lâmina que caminhava na direção da Estrela.  Singular giro. Outrora, os reis caminharam na direção de uma estrela nem mais nem menos concreta que você, praça da Estrela com teu arco, órbita onde o sol se aloja como o olho do céu, giro aventuroso e cujo objetivo era talvez você que eu solicito, amor fatal, exclusivo, e assassino. Se eu tivesse sido um dos reis, Jesus, você seria morto no berço, estrangulado, por ter interrompido tão logo minha viagem magnífica e quebrado minha liberdade, depois, sem dúvida, um amor místico acorrentou-me e arrastou-me como prisioneiro nas estradas do globo que eu sonhara percorrer livre.
Comprazia-me à contemplação do jogo de seu manto de pele contra seu pescoço, dos choques da bordadura contra as meias de seda, ao roçar adivinhado da dobra sedosa contra as ancas. Bruscamente, constatei a presença de uma bordadura branca em torno das franjas. Esta aumenta rapidamente, deslizou até à terra, e quando alcancei este lugar, recolhi a calça de fina batista. Ela cabia inteiro em minha mão. Desdobrei-a, mergulhei nela a cabeça com delícias. O odor mais íntimo de Louise Lâmina a impregnava. Que fabulosa baleia, qual prodigioso cachalote distila um âmbar mais odorante. O pescadores perdidos nos fragmentos da banquisa e que vocês deixariam perecer de emoção para cair nas vagas glaciais quando, o monstro esquartejado, a gordura e o óleo e as bárbulas para fazer espartilhos e guarda-chuvas cuidadosamente recolhidos, vocês  descobrem no ventre escancarado o cilindro de matéria  preciosa. A calça de Louise Lâmina ! que universo ! Quando voltei à noção dos cenários, ela tinha ganhado distância. Cambaleante entre as luvas que agora se abraçavam, a cabeça pesada de embriaguez, eu a persegui, guiado por seu manto de leopardo.
Na Porta Maillot, levantei o vestido de seda negra do qual ela havia se desvencilhado. Nua, ela estava nua agora por baixo do seu manto de pele selvagem. O vento da noite carregado do odor rugoso dos véus de linho recolhido ao longo das costas, carregado do odor do sargaço encalhado nas praias e em parte dissecado, carregado da fumaça das locomotivas a caminho de Paris, carregado de odor do calor dos trilhos após a passagem dos grandes expressos, carregado do perfume frágil e penetrante dos gramados das relvas diante dos castelos adormecidos, carregado do odor de cimento das igrejas em construção, o vento denso da noite devia se engolfar por baixo do seu manto e acariciar suas ancas e a face inferior de seus seios. O roçar do tecido sobre suas ancas despertava sem dúvida nela desejos eróticos enquanto ela caminhava pela álea das Acácias até um destino desconhecido. Automóveis se cruzavam, a luz fraca dos faróis varria as árvores, o solo se eriçava de montículos, Louise Lâmina se apressava.
Eu distinguia muito nitidamente a pele do leopardo.
Tinha sido um furioso animal.
Durante anos tinha aterrorizado uma região. Via-se às vezes sua silhueta flexível se perfilar sobre o galho baixo de uma árvore ou sobre um rochedo, depois, na aurora seguinte, caravanas de girafas e de antílopes, no caminho dos bebedouros, testemunhavam junto a indígenas uma epopéia sangrenta que tinha profundamente inscrito suas garras sobre os troncos da floresta. Isso durou vários anos. Os cadáveres, se os cadáveres pudessem falar, poderiam ter dito que suas presas eram brancas e sua calda robusta mais perigosa que a cobra, mas os mortos não falam, ainda menos os esqueletos, ainda menos os esqueletos de girafas, pois esses graciosos animais eram a caça favorita do leopardo.
Um dia de outubro, quando o céu se esverdeava, os montes erguidos sobre o horizonte viram o leopardo, desdenhoso por uma vez dos antílopes, dos mustangues e das belas, altivas e rápidas girafas, rastejar até uma moita de espinhos. Toda a noite e todo o dia  seguinte ele se revirou rugindo. Ao nascer da lua ele mesmo se esfolou completamente e sua pele, intacta, jazia na terra. O leopardo não havia parado de crescer durante esse tempo. Ao nascer da lua ele atingia o cume das árvores mais elevadas, à meia-noite il despregava de sua sombra as estrelas.
Foi um extraordinário espetáculo a marcha do leopardo esfolado sobre o campo cujas trevas se adensavam com sua sombra gigantesca. Ele arrastava sua pele tal como os imperadores romanos jamais vestiram mais bela, nem eles nem o legionário escolhido entre os mais belos e que eles amavam.
Procissões de insígnias e de lictores, procissões de lucíolas, ascensões miraculosas ! nada iguala jamais em surpresa a marcha do animal sangrando sobre o corpo do qual as veias esguichavam em azul. Quando ele alcançou a casa de Louise Lâmina, a porta se abriu por si mesma e, antes de morrer, teve apenas a força de depositar sobre a escadaria exterior, aos pés da fatal e adorável jovem, a suprema homenagem de sua pele.
Suas ossadas obstruem ainda numerosas estradas do globo. O eco de seu grito de cólera, repercutido por muito tempo pelas geleiras e pelas encruzilhadas, está morto como o marulho e Louise Lâmina caminha diante de mim, nua por baixo do seu manto.
Mais alguns passos e eis que ela desabotoa essa última veste. Ele sucumbe. Corro mais rápido. Louise Lâmina está nua de agora em diante, totalmente nua no bosque de Boulogne. Os automóveis fogem urrando; seus faróis ora iluminam uma bétula, ora a coxa de Louise Lâmina sem atingir entretanto a pelagem sexual. Uma tempestade de rumores angustiantes passa sobre as localidades vizinhas: Puteaux, Saint-Cloud, Billancourt.
A mulher nua caminha cercada de crepitamentos de invisíveis tecidos; Paris fecha portas e janelas, apaga seus lampadários. Um assassino num bairro distante dá para si mesmo muito mal para matar um impassível caminhante. Ossadas obstruem a calçada. A mulher nua bate a cada porta, levanta toda pálpebra fechada.
Do alto de um imóvel, Bebê Cadum magnificamente iluminado, anuncia tempos novos. Um homem espia em sua janela. Ele espera. O que ele espera?
Uma repique de sinos desperta todo um corredor. Uma porta cocheira se fecha.
Um carro passa.
Bebê Cadum magnificamente iluminado permanece só, testemunha atenta dos acontecimentos dos quais a rua, esperemo-lo, será o teatro.

                                                                                                       Tradução: Eclair Antonio Almeida Filho

Leia muito mais em Homenagens a Robert Desnos por Claudio Willer: dados biográficos, versos, prosa poética, relatos de sonhos, etc.
Fonte: http://claudiowiller.wordpress.com/2012/01/10/homenagens-a-robert-desnos