quarta-feira, 27 de abril de 2011

Camilo Prado | Entrevista


"Sou um artesão e Edições Nephelibata é o nome que designa de forma genérica o artesanato que eu faço."

Uma entrevista com Camilo Prado

O mentor por trás das Edições Nephelibata é o entrevistado do número mais recente da revista literária Desenredos. Leia AQUI.

Para conhecer um pouco mais do autor e editor, confira o texto O Leitor Insano AQUI.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Daniel Liberalino | Lipoaspire o Superego

Desenho de Daniel Liberalino
Recebo uma ligação. É o Dr. Klaus. Marco com ele uma cirurgia para remoção do meu superego. "Aqui está", diz, balançando meu superego imerso num líquido conservante vermelho dentro de um tubinho. Era mesmo um simpático pedacinho de encéfalo. "Amarrei essa corrente para poder usar como chaveiro, se quiser". Pensei em doar para uma Instituição de Auxílio ao Genocida Desempregado, acabei deixando na estante como decoração. Encontrei o tubo vazio ao lado do indivíduo obeso de portentosa barba que dormia nu sobre meu sofá de camurça, ao lado de duas prostitutas, ao lado de várias coisas não identificáveis, ao lado de poças de vômito, na manhã seguinte a uma comemoração em minha casa. Fui até o mencionado indivíduo, caminhando sobre um tapete de coma alcoólico que agora adornava a minha casa como um bucólico pomar genital. Deveríamos sempre nos esquivar de contatos malsãos. Acordei o misterioso organismo e perguntei se ele lembrava de ter bebido o meu superego. Conforme explicou, encontrara o frasco entre as mini-garrafas de martini e absinto, então bebeu o líquido vermelho e cuspiu fora "aquele treco nojento que tava boiando lá dentro". "Aquele treco que estava boiando lá dentro", expliquei, "era o meu superego". "Vai se foder", disse, voltando a dormir. Então fui até a cozinha para organizar – pelo critério de pertinência cultural a etnias devastadas, em ordem crescente de sobreviventes – os meus bibelôs magnéticos na porta da geladeira, e vi um sapo que me encarava ali parado, no chão. Fitei por alguns minutos aquela protuberância anfíbia da realidade, dando tempo necessário para o input da retina ser aceito pelo cérebro, arquivado e processado, então devolvido com um carimbo de “RECUSADO” pelo córtex visual – e um post scriptum: “Estou indo tirar férias num spa em Puerto Rico”. Aí uma mosca pousou à frente do sapo. Este fascinante anfíbio anuro automaticamente disparou sua língua, a qual se deteve hesitante antes de alcançar a presa. Ficou congelada naquela posição.
"De que ponto de vista metafísico - presumindo que uma tal premissa poderia com efeito proceder - seria eticamente justificável o reprocessamento de nutrientes deste inseto, visando meu benefício exclusivo, todavia às custas de sua vida?", disse uma voz advinda do interior do sapo. "Ora, excluindo do conjunto de 'axiomas' de um suposto sistema ontológico quaisquer imperativos categóricos ou princípios governantes universais, restaria porventura a possibilidade de alguma forma de 'igualitarismo ético imanente' para as moscas, em que a Imanência como um todo corresponderia doravante a uma unicidade estática, não-kinética; um estado de absoluta imutabilidade platônica singularista? Isto seria contraditório com a assunção inicial de ausência de princípios universais, quando não um mero artifício ex nihilo, é claro, mas-".
"Superego, é você?", interrompi.
Levei o sapo para fazer uma endoscopia, no mesmo hospital aonde levei para fazer lavagens estomacais comigo tantas garotas, mulheres que acendem a paixão platônica em minha efêmera glande; espécimes fêmeas do homo sapiens que, como uma chama ardente, um furor replicativo, despertam-me o Clark Gable darwinístico interior.
- Minha pequena flor de lótus gastricamente desapossada, vamos àquele outro endoscópio. O endoscópio do amor.
Por um golpe de sorte, meu superego havia sido apenas parcialmente digerido. O sapo retratou-se pelo vexaminoso mal entendido, e nos afiançou que, antes de ser acidentalmente transformado em anfíbio por um professor de tai chi chuan durante uma breve experiência homossexual numa piscina térmica natural do Tschyigen Grand Hotel (Alpes Suíços), era um bem-sucedido microempresário do ramo de equipamentos para auto-imolação. Eu lhe disse “Ei, por que não deixamos isso tudo pra trás e pegamos uma sauna?”. “Eu gostaria de ir com você, meu amigo, mas a minha espécie apenas sobrevive em climas temperados, e a mais leve variação de calor faria o meu pequeno corpo explodir, ou perder todos os privilégios na divisão de bens em caso de divórcio”. Lambeu os olhos com a língua, sutilmente. “Isso seria terrível”.
Assim, esquecemos a sauna e combinamos de nos encontrar na terça, para testar os limites neurofisiológicos do isolamento, privação de sono e abuso psicológico extremos. Marcamos de ficar numa prisão em Cabul, Afeganistão, para onde iríamos disfarçados de terroristas.

Para ler esse e outros contos que deixariam William Burroughs orgulhoso, acesse: Como ajustei minha vida social no inferno, blog do mossoroense Daniel Liberalino. Ou baixe o livro dele AQUI.

Philip Lamantia | A Voz dos Médiuns da Terra


Estamos mesmo alimentados
com máquinas mentais de paz & guerra
cérebros nucleares de monóxido, computadores cancerígenos
motores sugando nossos corações de sangue
que outrora cantaram coros de aves naturais!
Basta de dínamos & guindastes
bá-bá-bate de polias & pistões
invenção da Humanidade do Demônio
E logo
se forem silenciadas
e sobrevivermos aos altares de sacrifício
do deus automóvel e das vulvas de aço
vertendo loucura molecular
por várias camadas de pó satânico

se a Máquina completa da multidão algemada
não for dissolvida, voltando à Terra
de onde seus elementos foram roubados
deveremos evocar
a Grande Onda Oceânica
Neter das águas
e o Rei Atlante e seus espíritos-serpentes
também conhecidos como
Orco
Dagon & Draco
para que mandem ondas de marés calamitosas
– de mil pés de altura, se preciso –
para enterrar todas as cidades monstruosas de metal
e suas bilhões, bilionárias rodas de morte química!

Oh, William Blake!
tu podes inspecionar, se te aprazes,
esta lição da Varredura Geral de Aquário
que o maravilhoso espírito de purificação terrena do Oceano
irá deter tais pesos e rapinagens
seu sangue metálico e pele muito fina
para nos ensinar a canção terrena de harmonias taoístas!

Tradução de Márcio Simões

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Borges | Literatura Fantástica e Ofício Literário

"Creio que não deveríamos falar de literatura fantástica. E uma das razões — que já declarei alguma vez — é que não sabemos a que gênero corresponde o universo: se ao gênero fantástico ou ao gênero real.
  *  *  *
 Creio que se um homem tem vocação literária — escrevi um soneto sobre isso, não? —, então as desventuras pessoais, tudo isso, podem ser um alimento para sua obra e, se me permitem incorrer em exemplos muito elementares, e muito evidentes, não creio que o cárcere de Cervantes ou de Verlaine ou a cegueira de Milton lhes impedissem escrever a poesia que ainda admiramos. Em geral creio que seria mais conveniente para a obra literária que se seguisse a tradição judia, ou seja, a tradição que faz com que o rabino, que viria a ser também o homem de letras, exerça ao mesmo tempo um ofício qualquer, e conviria, segundo me parece, que esse ofício não fosse o jornalismo, porque o jornalismo se assemelha perigosamente à literatura e poderia contaminar a obra do autor. Parece-me melhor, digamos, o caso de Spinoza, polindo lentes e polindo um sistema filosófico, tudo isto ao mesmo tempo."
(Entrevista a Alejandra Pizarnik e Ivonne A. Bordelois, 1964)
  *  *  * 
“Neste país, no entanto, há uma tendência a considerar qualquer tipo de literatura — especialmente a poesia — como um jogo de estilo. Conheci muitos poetas que escreveram bem — coisas bem lindas, de uma maneira delicada —, mas ao falar com eles não contam senão obscenidades ou então falam de política, como pode fazer qualquer um, porque sua literatura é uma ocupação secundária. Aprenderam a escrever da mesma maneira que um homem pode aprender a jogar xadrez ou bridge. Na realidade, não são poetas ou escritores. É um truque que aprenderam conscienciosamente e que conhecem a fundo. Mas a maioria deles — salvo quatro ou cinco, digamos — não parece crer que a vida tenha nada de poético ou misterioso. Tomam as coisas por garantidas. Sabem que quando têm que escrever devem se tornar, de imediato, tristes ou irônicos”.
(Entrevista a Ronald Christ, 1966)
Jorge Luis Borges

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Octavio Paz | O Cântaro Quebrado


O CÂNTARO QUEBRADO
Octavio Paz

O olhar interior se desdobra e um mundo de vertigem e chama nasce sob a face do que sonha:
sóis azuis, verdes redemoinhos, bicos de luz que abrem astros como romãs,
girassol solitário, olho de ouro girando no centro de uma esplanada carbonizada,
bosques com sons de cristal, bosques de ecos e respostas e ondas, diálogo de transparências,
vento, galope de água entre os muros intermináveis de um desfiladeiro de azeviche,
cavalo, cometa, foguete que se fixa justamente no coração da noite, plumas, olhos-d’água,
plumas, súbito florescer das tochas, velas, asas, invasão do branco,
pássaros das ilhas cantando sob a face do que sonha!

Abri os olhos, levantei-os até o céu, e vi como a noite se cobria de estrelas.
Ilhas vivas, braceletes de ilhas flamejantes, pedras ardendo, respirando, cachos de pedras vivas,
quanta fonte, que claridades, que cabeleiras sobre as costas escuras,
quanto rio lá em cima, e esse som remoto de água junto ao fogo, de luz contra a sombra!
Harpas, jardins de harpas.

Mas ao meu lado não havia ninguém.
Só a planície: cactos, acácias, pedras enormes que estalam sob o sol.
Não cantava o grilo,
havia um vago cheiro de cal e sementes queimadas,
as ruas da vila eram riachos secos
e o ar se abriria quebrado em mil pedaços se alguém houvesse gritado: quem vive?
Colinas peladas, vulcão frio, pedra e arquejo sob tanto esplendor, seca, sabor de poeira,
rumor de pés descalços sobre a poeira, e o terebinto no meio da planície como uma nascente petrificada!

Diga-me, seca, diga-me, terra queimada, terra de ossos remoídos, diga-me, lua agônica,
não há água?
há somente sangue, somente poeira, apenas pegadas de pés desnudos sobre os espinhos,
apenas farrapos e comidas de insetos e torpor sob o meio-dia ímpio como um cacique de ouro?
Não há relinchos de cavalos à margem do rio, entre as grandes pedras redondas e reluzentes,
no remanso, sob a luz verde das folhas e os gritos dos homens e as mulheres banhando-se à aurora?
O deus-milho, o deus-flor, o deus-água, o deus-sangue, a Virgem,
todos estão mortos? se foram, cântaros quebrados à margem da fonte cega?
Só o sapo está vivo?
Só reluz e brilha na noite do México o sapo esverdeado?
Só o cacique gordo de Zempoala é imortal?

Estendido ao pé da divina árvore de jade regada com sangue, enquanto dois jovens escravos o abanam, nos dias das grandes procissões frente às pessoas, apoiado na cruz: arma e bengala,
em traje de batalha, o rosto esculpido em sílex aspirando como um incenso precioso o fumo dos fuzilamentos,
nos fins de semana em sua casa blindada junto ao mar, ao lado de sua querida coberta de joias de gás néon,
Só o sapo é imortal?

Eis aqui a raiva verde e fria e a sua calda de navalhas e vidro cortado,
eis aqui o cão e seu uivo sarnento,
a agave taciturna, a palma e o cacto candelabro arrepiado, eis aqui a flor que sangra e faz sangrar,
a flor de inexorável e cortante geometria como um delicado instrumento de tortura,
eis aqui a noite de dentes compridos e olhar afiado, a noite que despela com uma pederneira invisível,
ouve os dentes se chocarem uns contra os outros,
ouve os ossos esmagando os ossos,
o tambor de pele humana golpeado pelo fêmur,
o tambor do peito golpeado por um calcanhar furioso,
o tam-tam dos tímpanos golpeados pelo sol delirante,
eis aqui a poeira que se levanta como um rei amarelo e tudo desenraiza e dança solitário e se desmorona
como uma árvore em que secaram as raízes, como uma torre que cai de um só golpe,
eis aqui o homem que cai e se levanta e come poeira e se arrasta,
o inseto humano que perfura a pedra e perfura os séculos e carcome a luz,
eis aqui a pedra quebrada, o homem quebrado, a luz quebrada.

Abrir os olhos ou fechá-los, tudo é igual?
Castelos interiores que incendeiam o pensamento para que outro mais puro se levante, apenas fulgor e chama,
semente da imagem que cresce até ser árvore e faz estralar o crânio,
palavra que busca uns lábios que a digam,
sobre a antiga fonte humana caíram grandes pedras,
há séculos de pedras, anos de lajes, minutos densos sobre a fonte humana.
Diga-me, seca, pedra polida pelo tempo sem dentes, pela fome sem dentes,
poeira moída por dentes que são séculos, por séculos que são fomes,
diga-me, cântaro quebrado caído na poeira, diga-me,
a luz nasce esfregando osso contra osso, homem contra homem, fome contra fome?
até que surja ao fim a faísca, o grito, a palavra,
até que brote finalmente a água e cresça a árvore de largas folhas de turquesa?

Há que dormir com os olhos abertos, há que sonhar com as mão,
sonhemos sonhos incansáveis de rio buscando seu canal, sonhos de sol sonhando seus mundos,
há que sonhar em voz alta, há que cantar até que o canto crie raízes, troncos, ramos, pássaros, astros,
cantar até que o sonho engendre e brote encostado ao que dorme a espiga vermelha da ressurreição,
a água da mulher, o manancial para beber e ver-se e reconhecer-se e recobrar-se,
o manancial para saber-se homem, a água que fala sozinha na noite e nos chama com nosso nome,
o manancial das palavras para dizer eu, tu, ele, nós, embaixo da grande árvore vivente estátua da chuva,
para dizer os pronomes formosos e reconhecer-nos e sermos fiéis a nossos nomes
há que sonhar para trás, à fonte, há que remar séculos acima,
para além da infância, para além do começo, para além das águas do batismo,
derrubar as paredes entre o homem e o homem, juntar de novo o que foi separado,
vida e morte não são mundos contrários, somos um só talo com duas flores gêmeas,
há que desenterrar a palavra perdida, sonhar para dentro e também para fora,
decifrar a tatuagem da noite e olhar cara a cara o meio-dia e arrancar-lhe sua máscara,
banhar-se em luz solar e comer os frutos noturnos, soletrar a escritura do astro e a do rio,
recordar o que dizem o sangue e a maré, a terra e o corpo, volver ao ponto de partida,
nem adentro nem afora, nem acima nem abaixo, no cruzamento de caminhos, onde começam os caminhos,
porque a luz canta com um rumor de água, com um rumor de folhagem canta a água
e a aurora está carregada de frutos, e o dia e a noite reconciliados fluem como um rio manso,
o dia e a noite se acariciam longamente como um homem e uma mulher enamorados,
como um só rio interminável sob arcos de séculos fluem as estações e os homens,
para além, no centro vivo da origem, para além de fim e começo.
Tradução: Barbosa da Silva

terça-feira, 5 de abril de 2011

Sol Negro no Cronópios

“O mundo devastado fundou uma poética singular no século XX, de encantar Adorno com sua duvidosa concepção se haveria o rascunho de um poema sequer depois de Auschwitz. Da poética do emudecimento de Paul Celan à do silêncio de João Cabral, talvez sintetizaria Modesto Carone. Poesia boa é poesia morta. E assim, calada no seu canto, a sombra que restou dela é muitas vezes rebuscada em mãos mui universitárias, com a desculpa da "forma difícil", conceito caro aos formalistas também futuristas russos. Seria essa a via única da poesia hoje, repleta de versos e palavras partidos ao meio, imagens cifradas à procura de hermeneutas de primeira, lugares e vocábulos exóticos na direção de um profundo estranhamento, mensagens extraviadas antes mesmo da última estrofe, fala desarticulada em defesa de uma discussão metalinguística antes de tudo?
Não só, talvez diria o coletivo do Rio Grande do Norte aqui apresentado. Os poetas Barbosa da Silva, Márcio Magnus, Márcio Simões e Sopa D`Osso, integrantes do grupo "Sol Negro", contestariam tal limitação, sem se distanciar da questão lançada há mais de um século pela literatura, arrastando consigo a percepção linguística do Simbolismo e a viva provocação das Vanguardas. Esses autores de Natal invertem a equação que cada vez mais se torna consenso entre os poucos leitores de poesia – e cada vez mais exibidos na ruína que os envolve, como se fossem as últimas testemunhas mas as primeiras detentoras da mais alta cultura, o que os faz pisarem com a mesma bota dos opressores as cabeças da pouca humanidade que se dispersa, errante, num mundo eternamente entre-guerras. Vejamos de perto como o "Sol Negro" retira o coração das trevas, e de que maneira eles não se furtam desse apocalipse now.
Sua proposta é a de instalar a percepção do horror no horizonte de cada linha, sempre perdida ao descermos os olhos para a próxima, como pode ser conferido na pequena amostra da antologia...”

Trecho inicial de "Uma bomba precisa: a poesia de Márcio Simões e o coletivo Sol Negro", ensaio de Paulo Ortiz publicado no Portal Cronópios. Leia aqui.