quarta-feira, 19 de setembro de 2012

OS ESPANTALHOS E O MAR



O que dois espantalhos teriam a dizer um ao outro? Imagina-se que “façam” o seu serviço em silêncio, em meio à imensidão de um campo cultivado. Espantalhos são, como se sabe, bonecos feitos com o objetivo de espantar os pássaros de hortas ou searas, a fim de que não se alimentem do que elas produzem. Espantalhos imitam humanos, mas são apenas roupas velhas preenchidas por palha e em suas cabeças feitas com mesmo material ostentam chapéu. Espantalhos simulam vida e geram temor. Temor que não é apenas o de pássaros famintos, pois existe de fato uma doença de ordem psíquica, que possui até uma terminologia científica. A pessoa com aversão e medo mórbido, irracional, desproporcionado e persistente por espantalhos está acometida de bogyfobia.

Supõe-se que espantalhos sejam péssimos “atores” devido a sua quase total imobilidade, e, quando se movem, seus raros movimentos são inumanos, promovidos pelo vento. Diz-se que os pássaros acabam descobrindo a farsa, que espantalhos são seres sem vida, energia, vontade e, por isso, não têm a capacidade de lhes causarem mal.

Os pássaros, portanto, depois de algum tempo de muita desconfiança e observação, acostumam-se com os espantalhos e atacam as lavouras para saciarem a fome. Há tempos existem métodos bem mais eficientes e eficazes que substituem o “trabalho” dos espantalhos. Enfim, com exceção da citada fobia, atreve-se aqui a afirmar que espantalhos não servem para nada. São inúteis.

Mas o conceito e os sentidos de um espantalho se ampliam no discurso poético de Renato Suttana, em especial no poema que dá nome a seu novo livro, “Conversa de espantalhos”.  No texto, os espantalhos são comparados a seres humanos desprovidos de emoções positivas, trabalhando sem ânimo para resguardar a messe, uma messe que não lhes servirá de fruto nem de usufruto. Independe que seja plantação de trigo, de medos ou de sonhos, o que metaforicamente é produzido não os beneficia. Aos homens que se reduzem à condição de espantalhos, resta apenas por sustento sua essência, seu estofo de palha, palha que até os dicionários apresentam como “coisa insignificante”. Esses homens-espantalhos são alienados de seus objetivos no “outeiro”, e conscientes de que, quando muito, podem conjugar apenas o verbo estar, nunca o verbo ser. O espantalho anula-se como ser e conforma-se com estar humano, um estar involuntário que talvez não espante nem mesmo a sua própria nulidade, também humana. É como se o espantalho se transfigurasse num Cristo às avessas, indigno de crença e de fé, empalado em cruz a fim de tão somente se manter imóvel, com os braços abertos ao nada. Já não é mais Cristo, é humano. Já não é mais humano, é humanoide. Já não é mais humanoide,
é coisa.

Esse espantalho, sujeito lírico carregado de si e de angústias, aparenta estar em companhia de outro(s) espantalho(s), até mesmo para que haja a conversação anunciada no título. Mas o que provavelmente ocorre é um monólogo em que são expressos sentimentos e emoções por meio do plural de humildade: “abrimos”, “guardamos”, “Somos”. Mas ninguém há de se enganar com esse artifício discursivo e todos hão de perceber de pronto que existe o diálogo, sim, ainda que subliminar, ainda que “sem voz ou pensamento”, porque o espantalho tem a sigilosa interlocução do próprio leitor. Nesse aspecto, o espantalho se humaniza ao ser voz-e-pensamento que confidencia as aflições que qualquer um de “nós” somos capazes de vivenciar e contra as quais, muitas vezes, nada podemos fazer.

Num conjunto de 68 poemas, a angústia e a solidão são constantes, assim como a impossibilidade de agir contra elas. Entretanto, não significa que seja um livro com textos lamentosos. O que se percebe são composições bastante densas que, em teor elegíaco, tentam equilibrar emoção e razão. Nesse caso, uma figura usada abusivamente, e bem, é a do mar. O mar que é tropo de busca, de trânsito, de movimento e, também, na mesma linha de raciocínio, paradoxo navegação/naufrágio.
 
Há sempre um “eu” descontente de sua condição que encontra no mar pelo menos uma aspiração a um porvir diferenciado, ainda que na intrépida aventura marítima apenas se revele de modo especular e reflexivo o homem em toda a extensão de sua impotência ante as certezas e, principalmente, ante as incertezas da vida.

Qualidades tanto na forma quanto no conteúdo não faltam ao livro “Conversa de espantalhos”. Engenho e arte são instrumentos bem articulados nas mãos de um poeta meticuloso como Renato Suttana. Aos leitores de sua poesia, exige-se apenas a coragem da interlocução, que os levará numa viagem bastante audaciosa à boa literatura.
Henrique Pimenta



quarta-feira, 29 de agosto de 2012

punti luminosi

“O que há de mais importante na literatura, sabe? é a aproximação, a comunhão que ela estabelece entre seres humanos, mesmo à distância, mesmo entre mortos e vivos. O tempo não conta para isso. Somos contemporâneos de Shakespeare e de Virgílio. Somos amigos pessoais deles. Se alguém perto de mim falar mal de Verlaine, eu o defendo imediatamente; todas as misérias de sua vida são resgatadas pela música de seus versos.”

(Carlos Drummond de Andrade, entrevista a Lya Cavalcanti, 1955)
 

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Omar Khayyam │Dois poemas de O Rubaiyat


V

Uma vez que se ignora o que é que nos reserva
O dia de amanhã, busca ser feliz hoje.
Vai sentar-te ao luar e bebe. Pois talvez
Não vivas mais quando amanhã voltar a lua.



XXVI

O vasto mundo: apenas
Grão de poeira no espaço.
Toda a ciência dos homens:
Só palavras, palavras.


Povos, animais, flores
Dos sete climas: sombras.
Resultado de toda
Tua meditação: nada.




O Rubaiyat de Omar Khayyam. Tradução de Manuel Bandeira (de Franz Toussaint)

terça-feira, 24 de abril de 2012

“Na paz das águas em sofrimento”: Walflan de Queiroz e o Livro para Tânia

She walks in beauty, like the night
Of cloudless climes and starry skies

Lord Byron

Por João Antônio Bezerra Neto


Capa de O livro de Tânia
Publicado em 1963, O Livro de Tânia, do poeta potiguar Walflan de Queiroz [1930-1995], celebra a poesia lírica e amorosa. O tom profundamente angustiante, que caracterizou as elegias para Irene e Tereza, as musas n’O Tempo da Solidão, o seu livro de estreia, retorna na mesma proporção nos poemas para Tânia, a sua paixão não correspondida.
Assim como O Tempo da Solidão, as ilustrações ficaram a cargo do pintor Dorian Gray, que, também poeta, vale lembrar, ilustrou com intensidade, ao lado de Newton Navarro, uma geração de escritores potiguares ao longo das décadas de 1960 e 1970, principalmente. A capa d’O Livro de Tânia reproduz o rosto de uma mulher banhado com um ocre dourado, num plano à margem, estabelecendo a perfeita comunhão entre o código visual e o código verbal.  
Ao que se sabe, Walflan de Queiroz foi um homem dado a paixões platônicas, cujo destino desde sempre o levou à profunda tristeza e ao desamparo, contribuindo para fixar a imagem do poeta atormentado e solitário, um ser decaído, que compreende o Amor como um fardo.
A sua vida afetiva não foi estável, devido muito provavelmente aos efeitos devastadores da esquizofrenia, doença de que fora acometido ainda bastante jovem e que aos poucos acabou por destruí-lo. Para efeito biográfico, lembramos que Walflan de Queiroz não casou. Nem teve filhos. Formou-se na década de 1950 pela tradicional Faculdade de Direito em Recife, mas nem chegou a exercer a profissão. Talvez até tenha tentado exercê-la. Na juventude, foi marinheiro mercante e ainda experimentou o silêncio dos claustros. Faleceu aos 65 anos de idade em Natal, cidade onde morou e publicou seus livros. O que restou do poeta foram os poemas, o seu maior legado.
Um dos eixos temáticos de sua obra poética é, portanto, a presença da figura feminina. O poeta Walflan tinha a tendência para amores não consumados, irrealizáveis, tematizados em poemas à moda romântica do mal do século. Culto e poliglota, ele lia com fervor, com obsessão, Shelley, Keats, Poe, assim como também lia Baudelaire, Rimbaud, Rilke e Hart Crane. A poesia walflaniana elege esse cânone estrangeiro como seu referencial estético.
Por causa do lirismo predominantemente platônico, o escritor Rômulo Wanderley, em sua antologia Panorama da Poesia Norte-Rio-Grandense, lançada em 1965, inscreveria o nome de Walflan de Queiroz sob a auréola dos poetas que herdaram a legítima influência dos românticos angustiados. Com esses românticos, o poeta Walflan tem muita afinidade, conforme expressa Wanderley:

A poesia de Walflan de Queiroz revela um talento excepcional, a serviço de uma profunda e original sensibilidade. É um moço de talento, cuja poesia expressa uma tortura interior que lembra os grandes românticos e os grandes sofredores da Literatura Universal.


Em O Livro de Tânia, o poeta Walflan nos transmite o que está no âmago do seu sofrimento: a dor da paixão. A paixão dos agônicos. A dedicatória impressa no centro da página reflete a visão sofredora dessa paixão: “Eis o teu livro, Tânia. O mar já não existe. E as rosas que te dei naquela noite de dezembro, estão tristes. Esperam pela tua ternura. Tocadas, como são, pelo orvalho e os ventos das manhãs”. Sua mensagem é amarga. Evoca o mar que deixou de existir. Evoca rosas que foram esquecidas, sem afago. Na página seguinte, a epígrafe extraída do Gênesis, que relata o episódio da luta de Jacó com um anjo:
 
Jacó ficou só: e veio alguém que lutou com ele até o romper do dia. Vendo que não podia vencê-lo, tocou-lhe aquele homem na articulação da coxa e esta deslocou-se, enquanto Jacó lutava com ele. E disse-lhe: “Deixa-me partir, porque a aurora se levanta”. – “Eu não te deixarei partir, respondeu Jacó, antes que me tenha abençoado”. Ele perguntou-lhe: “Qual é o teu nome?” – “Jacó” – “Teu nome não será mais Jacó, tornou ele, mas Israel, porque lutaste com Deus e com os homens e venceste”.          

A luta de Jacó serve de espelho metafórico para o poeta Walflan, em luta consigo mesmo, pois ele está à procura de um sentido para a sua paixão por Tânia.
Ilustração de Dorian Gray para O livro de Tânia
A maioria dos poemas n’O Livro de Tânia está distribuída em quatro partes. A primeira, “Três momentos para Tânia”, onde a epígrafe de Emily Dickinson diz: “Because my brook is silent / It is the sea”; a segunda, “Poemas da ausência”, trazendo a epígrafe, em francês, de Rilke: “Tu es en exil, tu n’as pas de patrie, aucune place ici-bas, n’est la tienne”; “De profundis”, a parte mística do livro, que tem como epígrafe o salmo de Davi: “Si tu retiens les fautes, Yahvé, / Seigneur, qui donc subsistera?”; e, por fim, “O sustentáculo da nuvem”, cuja epígrafe é anunciada pela voz de Rimbaud: “Les nuées s’amassaient sur la haute mer faite d’une éternité de chaudes larmes”.
No prefácio, o poeta Walflan de Queiroz escreve sobre a sua obra com a lucidez de quem reconhece a angústia existencial que cerca o verdadeiro artista, cônscio de sua arte e de sua criação. Leiamos:

Poesia e Tentativa

Muita gente ignora que a poesia seja uma arte temporal. E que, como a música e o canto popular, tem raízes na imaginação, nas festas do povo, nas baladas e no ditirambo grego.
O primeiro poeta foi Homero. O primeiro sacerdote, Orfeu. Descendemos de Homero, como descendemos de Orfeu. O objeto da poesia nem sempre é o mesmo, mas a pureza da intenção, o prazer superior do espírito, permanece.
Se considero Shakespeare o mais completo poeta que existiu, foi porque ele traçou com Hamlet, o retrato do artista. Hamlet foi e será sempre um limite entre o conhecido e o desconhecido, entre a luz e as trevas. Quem não entender o tipo Hamlet, nada percebe, nada intui de belo e de trágico que mora no homem.
E Hamlet não gostava de Polonius. Amava apenas uma mulher de olhos doces e meigos.
Foi com Poe que aprendi uma definição de poesia. “Criação rítmica da beleza”, assim fala o poeta que conheceu do anjo e do demônio. E que, por fim, venceu o demônio. [...]
Minha intenção neste livro de poemas foi única e exclusivamente poética. Qualquer outra interpretação trai a malícia de quem o imaginou. Uma mulher pode ser um abismo, como também uma flor da montanha. No meu caso, encontrei um abismo. Mas, somente no abismo encontra-se a verdade. Os deuses amam a profundidade, não o tumulto, dentro da gente.
Tirei deste abismo, rosas azuis. Com elas, faço um ramo dourado e o deponho perto de minha janela. Pássaros vindos, não sei de que nascentes ou de que montanhas, cantam novas canções para mim. [...]

Em sua reflexão sobre os primórdios da Poesia, lembra que, assim como a música e o canto, ela é também uma arte temporal, destacando Homero, o “primeiro poeta”. De Homero para Orfeu, o “primeiro sacerdote”, é traçado o legado da Tradição, que expressa Walflan de Queiroz; depois, a referência a Hamlet, o príncipe revoltado, onde coexistem a poesia e a loucura, o amor por Ofélia e a morte. Admite também a influência de Poe para uma definição de poesia como “criação rítmica da beleza”.  
Ilustração de Dorian Gray para O livro de Tânia
Consciente de que a poesia tem o poder de transcender a realidade, o poeta Walflan deseja evitar qualquer polêmica passional e faz uma advertência ao leitor desavisado: “Minha intenção neste livro de poemas foi única e exclusivamente poética. Qualquer outra interpretação trai a malícia de quem o imaginou”. Sua sensibilidade é de fato muito grande, pois ele confia em seus sentidos para a transfiguração do sentimento. Por isso, a mulher que ele canta é uma metáfora simbolizada pela imagem do abismo, do infinito, ou como também ele próprio diz: “uma flor da montanha”.
O abismo, especialmente, simboliza a profundidade do sentimento, consubstanciado em tensões e desejos. E, no poema a seguir, a noção do abismo oferece-nos outro aspecto, o de natureza mística, pois a imagem da mulher inalcançável provoca no poeta algum sentimento de religiosa resignação:

ABISMO

Senhor, convertei meu abismo em redenção,
E mandai vosso anjo erguer a minha alma,
Da profunda tristeza em que se encontra.
Fazei, Senhor, que, nenhum demônio possa
Jamais encontrar em meu corpo alívio para o seu tormento.
E derramei, vosso óleo e vosso vinho
Por sobre a minha miséria e a minha desolação. 

Num dos primeiros poemas do seu livro, Walflan de Queiroz descreve a beleza física da sua musa por meio de uma linguagem idealizada, repleta de comparações. O começo do poema diz: “Tânia. Teus olhos são doces e brilhantes, cinzentos como a noite. / Tânia. Teus olhos são grandes e lindos como duas estrelas que se amam”.
Tânia é motivo poético que extrapola o elemento real, inspirando o poeta a evocar várias musas: “Te amarei e te louvarei sempre. / Annabel Lee dos meus sonhos, lírio de minha solidão, / Dá-me o alento para os meus dias, bálsamos para o meu / Sofrimento. / Sou como a noite, não sei onde moro”. Nestes versos, compartilha a sua dor com Poe, lembrando-se da sua heroína Annabel Lee.
Noutro poema, estabelece um elo comparativo com Ofélia: “Teus olhos cinzentos. Ofélia / Tinha os teus olhos. Eram como pétalas, gotas / De chuva que preenchiam o meu sonho”. Em “Balada a Tânia”, clama pela sua amada: “Tânia, Tânia, / Minha é a rosa, / Teu é o poente, / De sangue e de coral”.
O poema “No Egito, afinal” é latente o desejo de evasão: “Mulher dos meus sonhos, / Olhos cinzentos da noite, / Como as flores e as palmeiras do Nilo”. Já no poema “Ama-me que sou um pássaro”, temos a dualidade entre Vida e Morte: “Ama-me como um pássaro, como o crepúsculo / Ou como um inquieto rio, como uma tocha, / E assim então morrerei”.
A imagem do crepúsculo sugere introspecção no poeta:    

A TÂNIA, NUMA TARDE DE CREPÚSCULO MÍSTICO

Esta tarde meus olhos estão cansados de te esperar
E de te desejar na tranquila paisagem do porto,
Onde os barcos balançam mansamente sob o crepúsculo.
Esta tarde eu te ouço no murmúrio das águas, no voo
Da gaivota, quando desfalece em mim a visão da retirada ilha.
Esta tarde meu coração adormece docemente em tuas mãos
E penso no silêncio das estrelas e dos teus olhos.

O discurso poético repousa nos elementos constituintes da transitoriedade: os barcos, o crepúsculo que se desfalece no horizonte, o murmúrio do mar, a gaivota no céu, a ilha. Tudo é fugaz. É dentro dessa fugacidade temporal que o eu lírico vivencia e anseia por sua paixão. A clássica metáfora romântica do poema está no final: “Esta tarde meu coração adormece docemente em tuas mãos / E penso no silêncio das estrelas e dos teus olhos”.          
            Noutro poema, o poeta recorda as virtudes do silêncio:

CANÇÃO PARA TÂNIA 

Tânia, eu não sou o vento
E nem o silêncio da estrela.
Eu sou o silêncio, a sombra do anjo.
Eu não sou o anjo.
Tânia, eu não sou a casa branca da floresta.
Eu sou apenas um pássaro boiando sobre as espumas
Do mar. Não sou a vaga. Não sou o ar.
Eu sou um rio, Tânia. Um rio impassível.
Mas, posso ser também, Tânia, uma rosa branca.
Uma rosa branca, para morrer contigo.

O silêncio, a “sombra do anjo”, a estrela, o pássaro, o mar, o rio, a rosa, enfim, metáforas e símbolos que retratam a dimensão lírica, existencial. A rosa branca é símbolo da pureza, da inocência, e com ela o eu lírico deseja demonstrar a fatalidade da sua paixão. “Uma rosa branca, para morrer contigo”.
Assim como no poema anterior, o poeta Walflan continua a sua descida metafísica aos recantos sombrios do ser. Nesse sentido, a sua postura é cada vez mais intimista, voltada para o inconsciente, para o lado noturno:    
  
NOTURNO PARA TÂNIA

Se, durante a noite, não sentires,
Cair sobre a tua face, uma lágrima,
Não, não sou eu.
Se, durante a noite, não ouvires,
O grito do pássaro pousando em tuas mãos,
Não, não sou eu.
Mas, se caminhares, pelo invisível,
E vires então o anjo inclinar-se sobre ti,
Sou eu, Tânia, sou eu. 
                 
Ilustração de Dorian Gray para O livro de Tânia
O símbolo da noite é recorrente na sua poesia. Vimos, por exemplo, que a noite está presente nos olhos da Amada (“cinzentos como a noite”), noutro verso, o próprio eu lírico afirma: “Sou como a noite, não sei onde moro”. Além da noite, a imagem mística do anjo.    
O último poema chama-se “Eurídice”, uma belíssima prosa poética plasmada numa linguagem órfica e cristã, que sintetiza o traço evocativo, desde sempre regido por atributos que singularizam a figura feminina em seu livro. Eurídice foi o grande amor de Orfeu, herói da Trácia, mito popular presente no imaginário da cultura ocidental.    
O Livro de Tânia é um dos livros essenciais à poesia norte-rio-grandense. Um livro cheio de riqueza e de referenciais poéticos. Um livro que privilegia a temática amorosa corajosamente. Walflan de Queiroz, à beira do seu Abismo existencial, consagra-se de uma vez por todas como um poeta marcado pela Angústia e pela Paixão. Um poeta fiel aos seus sentimentos os quais soube transfigurá-los para suportar o mundo.