quarta-feira, 29 de maio de 2013

Hakim Bey | Feitiçaria



O UNIVERSO QUER BRINCAR. Aqueles que recusam por causa de uma árida avidez espiritual & escolhem a contemplação pura traem sua humanidade – aqueles que se abstêm por causa de uma ansiedade estúpida, aqueles que hesitam, perdem sua chance ao divino – aqueles que moldam para si máscaras cegas de Ideias & se debatem por aí procurando por provas de sua própria solidez, terminam com olhar de mortos-vivos.
Feitiçaria: o cultivo sistemático da consciência expandida ou da atenção não-ordinária & sua disposição no mundo dos contratos & objetos para trazer os resultados desejados. As progressivas aberturas da percepção banem gradualmente os falsos eus, nossos fantasmas cacofônicos – a ‘magia negra’ da inveja & vendetta falha, pois Desejo não pode ser forçado. Quando nosso conhecimento do belo se hamoniza com a ludus naturae, a feitiçaria começa.
Não... não esse negócio de dobrar colheres ou de horóscopo, não a Aurora Dourada ou o pseudo-xamanismo, projeção astral ou Missa Satânica – se é mistureba que você quer, vá no real, na economia, na política, na ciência social – não na frágil porcaria blavatskiana.
A feitiçaria trabalha criando em torno de si um espaço psíquico/físico ou aberturas para um espaço de expressão livre – a metamorfose do lugar cotidiano em esfera angelical. Isso envolve a manipulação de símbolos (que são também coisas) & de pessoas (que são também simbólicas) – os arquétipos fornecem um vocabulário para este processo, sendo então tratados com se fossem simultaneamente reais & irreais, como palavras. Ioga imaginal.
O feiticeiro é um Realista Simples: o mundo é real – mas então também a consciência o deve ser, já que seus efeitos são tangíveis. O anestesiado acha até o vinho insosso, mas o feiticeiro pode se intoxicar com o mais simples sinal de água. A qualidade da percepção define o mundo da intoxicação – mas para mantê-la & expandi-la a fim de incluir outros, torna-se necessária uma certa espécie de atividade – feitiçaria. A feitiçaria não rompe com a lei da natureza porque não há Lei Natural, mas apenas a espontaneidade da natura naturans, o Tao. A feitiçaria viola as leis que tentam impedir este curso – reis, sacerdotes, hierofantes, místicos, cientistas & comerciantes, todos taxam o feiticeiro de inimigo por ameaçar o poder de seu engodo, a força tensa de sua rede ilusória.
Um poema pode funcionar como um encantamento & vice-versa – mas a feitiçaria se recusa a ser uma metáfora para mera literatura – insiste que símbolos devem causar eventos, assim como epifanias pessoais. Não uma crítica, mas um re-fazer. Rejeita toda escatologia & metafísica da remoção, toda nostalgia enevoada & futurismo histérico, em favor de um paroxismo ou tomada da presença.
Incenso & cristal, adaga & espada, varinhas, vestes, rum, cigarros, velas, ervas como sonhos secos – o garoto virgem debruçado em uma vasilha de tinta – vinho & ganja, carne, yantras & gestos – rituais de prazer, o jardim de houris & sakis – o feiticeiro sobe por estas cobras & escadas até um momento inteiramente saturado por sua própria cor, onde montanhas são montanhas & árvores, árvores, onde o corpo se torna todo tempo, o amado todo espaço.
As táticas do anarquismo ontológico estão enraizadas nesta Arte secreta – as metas do anarquismo ontológico aparecem em seu florescer. Caos aniquila seus inimigos & premia seus devotos... este estranho panfleto que já vai envelhecendo, manchado de poeira, assinado por um pseudônimo, revela tudo... enviado para uma fração da eternidade.

Tradução de Pedro Cesarino e Luiza Leite. In: Revista Azougue # 11, 2007.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Feras Saltando Através do Tempo | Charles Bukowski


Van Gogh escrevendo para seu irmão pedindo tintas
Hemingway testando seu rifle
Céline fracassando como médico
a impossibilidade de ser humano
Villon expulso de Paris por ser um ladrão
Faulkner bêbado pelas sarjetas da cidade
a impossibilidade de ser humano
Burroughs assassinando sua mulher com um tiro
Mailer apunhalando a sua
a impossibilidade de ser humano
Maupassant enlouquecendo num barco a remos
Dostóivesky de pé contra o muro para ser fuzilado
Grane fora da popa de um navio indo em direção à hélice
a impossibilidade
Sylvia com a cabeça no forno como uma batata assada
Harry Crosby saltando naquele Sol Negro
Lorca assassinado na estrada pelas tropas espanholas
a impossibilidade
Artaud sentado num banco de hospício
Chatterton bebendo veneno de rato
Shakespeare um plagiário
Beethoven com uma corneta no ouvido contra a surdez
a impossibilidade a impossibilidade
Nietzsche enlouquecendo completamente
a impossibilidade de ser humano
todos demasiados humanos
esse respirar
para dentro e para fora
para fora e para dentro
esses punks
esses covardes
esses campeões
esses cachorros loucos da glória
movendo esse pontinho de luz para nós
impossivelmente.

Tradução: Sergio Cohn. In: Poesia Beat. RJ: Azougue, 2012.