quarta-feira, 15 de junho de 2011

Antonin Artaud | A falsa superioridade das “elites”

Tradução de Lucas Fortunato

Antes de esmagar as “elites” é necessário primeiro compreendê-las, e, para isso, defini-las.
O mundo moderno que, espiritualmente falando, está em plena derrota que tanto odeia, justamente, todo o espiritual, deve restabelecer, se quer recobrar a paz, o equilíbrio entre os dois movimentos de fundo por meio dos quais se manifesta, seja valendo-se da cabeça ou das mãos, uma atividade e um dinamismo idênticos, cuja igualação integra o homem completo.
Assim como existe uma formidável má inteligência, no mundo presente, entre as faculdades opostas do espírito e da matéria, assim mesmo existe uma emulação, ou melhor, uma rivalidade entre o trabalho das mãos e o da cabeça. É inegável que as “elites” não têm lugar na sociedade de nosso tempo. A grande massa humana não se interessa pelos trabalhos do espírito, e não seria exagerado afirmar que se presta a reduzir à fome quem, com um desinteresse que foi melhor reconhecido em outras épocas, faz profissão de entregar-se ao puro trabalho do pensamento.
Mas antes de reduzir os intelectuais à fome, antes de esmagar as “elites” que edificam a glória de uma sociedade, a sociedade deve, pelo menos, exercer um esforço para aproximar-se dessas “elites”, quer dizer, para determiná-las. Um homem eminente com quem me queixava da triste situação que se abate sobre os artistas da França, me contestou:
- O quê quer você? Em nosso mundo, os artistas foram feitos para morrer sobre um monte de palha, quando não sobre a palha dos calabouços.
Repliquei que houve tempos em que se dava aos artistas o lugar que lhes corresponde, isto é, o primeiro, e em que a sociedade tinha, até mais além do que o necessário, com que lhes proporcionar meio de subsistência.
Que o dinheiro tenha se convertido no que é hoje – uma espécie de força maior, e, se se pode dizer assim, uma pedra de toque da vida –, bem, isso é um fato, não uma lei da evidência. E não é porque as coisas sejam assim que se deve resignar-se a aceitá-las como são. Existem demasiadas e muito elevadas razões para intentar uma transformação.
Para quê servem, então, as revoluções, se não para restabelecer o equilíbrio social e para injetar um pouco de justiça na injustiça da vida? No fundo dessa rivalidade, dessa luta em que as forças do espírito e da matéria se opõem, encontra-se um erro de concepção que pertence como coisa própria do mundo moderno: quero dizer que outros séculos a ignoraram.
Se no mundo capitalista moderno, onde o dinheiro está acima de tudo, existe, como não se pode negar, um desprezo característico pelas “elites”, o qual oculta por sua vez o ódio que inspira toda verdadeira superioridade, isso se deve, justamente, a que o mundo moderno atribui às “elites” uma realidade, uma existência que elas não têm.
Os que trabalham com as mãos esquecem que têm cabeça, e os que trabalham com a cabeça, em geral, acreditam-se diminuídos quando têm que trabalhar com as mãos.
Nessas condições, explica-se o desprezo que sente as massas comunistas pelas atividades gratuitas do espírito. O mundo moderno está em plena derrota porque despreza os trabalhos do espírito, e até pode-se afirmar que perdeu o espírito; mas este, por sua vez, tornou-se inútil porque rompeu com a vida. Que as “elites” deixem de crer em sua superioridade, que adquiram uma humildade proveitosa, que voltem o espírito à sua antiga qualidade de órgão, que apresentem os trabalhos da inteligência sob um aspecto vantajosamente material, e como por encanto cessará esta guerra imbecil entre os refinamentos suntuários do espírito e o trabalho das mãos que carece de valor quando não é regido pela lógica da cabeça.
Queira-se ou não, as “elites” são o peso, o contra-peso soberano que permite à vida o manter-se direita.
Os intelectuais ocuparão seu lugar na sociedade quando esta tenha o suficiente entendimento para compreender que existe uma identidade absoluta entre as forças do corpo e as da inteligência, e que o espírito é ao crivo da vida. Não sustento que o espírito seja tão útil como o corpo; sustento que não há nem corpo nem espírito, senão modalidades de uma força e uma ação únicas. E a questão da rivalidade entre ambas modalidades não chega sequer a se delinear.
Toca aos intelectuais empregar sua força espiritual em tarefas úteis que sejam como o sal mesmo da vida e não especulações do espírito, dessas que se chamam desinteressadas e gratuitas, mas que na realidade são tão desinteressadas e tão gratuitas, que não servem a ninguém nem para nada. O que não quer dizer que os intelectuais devam dedicar-se a tarefas operárias, senão que devem compreender, por fim, a utilidade funcional do espírito.
Se o corpo e o espírito são um só movimento, os intelectuais devem voltar seus esforços do lado em que o espírito toca os ritmos da vida enferma, e, como nos tempos em que reinou a grande cultura unitária de onde saíram todas as civilizações, voltar a ser curadores, os terapeutas das altas funções da vida no homem, posto que no organismo desorganizado do homem de hoje é onde se reflete o organismo desordenado do universo.
Masculino, feminino. As sociedades antigas consagraram em termos famosos o eterno antagonismo entre as forças do espírito, que são masculinas, e as forças do corpo ou da matéria, cuja pesada passividade é justamente feminina.
Seria coisa de uma mágica astúcia ressuscitar hoje em dia essas velhas noções sem as quais a vida é incompreensível.
Agora bem, para isso, temos ao alcance da mão um órgão mágico, uma arma que nos permite figurar a vida.
Esta arma de excepcional poder e inesgotável fecundidade é o teatro. Mas a sociedade moderna esqueceu as virtudes terapêuticas do teatro. Faríamos rir se lhe disséssemos que nos tempos antigos o teatro foi considerado um meio excepcional para restabelecer o equilíbrio perdido das forças, e que no aparato do teatro antigo existem músicas e danças de cura.
Tem-se esquecido que o teatro é um ato sagrado que empenha tanto quem o vê como quem o executa, e que a idéia psicológica fundamental do teatro é esta: que um gesto que se vê e que o espírito reconstrói em imagem, vale tanto como um gesto que se faz.
A isso se deve que, como instrumento de revolução não haja nada melhor que o teatro; e por meio dele, por meio desta arma dissolvente e formidável, todo governo revolucionário perspicaz, dirige e assegura sua revolução.
Não há revolução possível sem uma integração das “elites” às massas, as que ganham assim, só por este fato, um elevado tom espiritual.
Com suas raças indígenas primitivas, nas que abundam as músicas e as danças de cura, o México está pronto para entender uma revolução semelhante; e o melhor dessas músicas indígenas de cura espera o momento de ocupar seu lugar entre a massa dos trabalhadores.

PS: Não há motivo, com efeito, para não incorporar a arte popular dos índios à “elite”. Situar no mesmo plano cultural a vida do folclore e as investigações puramente intelectuais dos grandes escritores mexicanos, parece-me que é um meio refinado de acabar com os antagonismos que existem entre a “elite” e a massa, entre a arte popular e a arte burguesa, entre a vida intelectual e a vida instintiva, entre as efusões da mentalidade pura e as harmonias, também intelectuais, da vida orgânica dos índios.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Poesia Intersemiótica no Campus Cidade Alta

Falves Silva
No dia 10 de junho, ocorrerá no IFRN Campus Cidade Alta, às 19h, a mesa-redonda Poesia intersemiótica com a participação dos poetas Antonio Ronaldo, Falves Silva e João Batista de Morais Neto. Na ocasião, haverá apresentação musical de Antonio Ronaldo, exposição de Falves Silva e lançamento do livro “Caetano Veloso e o lugar mestiço da canção”, de João Batista de Morais Neto. A entrada é gratuita. O evento é promovido por estudantes do quarto período do Curso Superior de Tecnologia em Produção Cultural do IFRN. Mais informações AQUI.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Jorge de Lima | Poema do Cristão

Salvador Dali - O ovo cósmico

Porque o sangue de Cristo
jorrou sobre os meus olhos,
a minha visão é universal
e tem dimensões que ninguém sabe.
Os milênios passados e os futuros
não me aturdem porque nasço e nascerei,
porque sou uno com todas as criaturas,
com todos os seres, com todas as coisas,
que eu decomponho e absorvo com os sentidos,
e compreendo com a inteligência
transfigurada em Cristo.
Tenho os movimentos alargados.
Sou ubíquo: estou em Deus e na matéria;
sou velhíssimo e apenas nasci ontem,
estou molhado dos limos primitivos,
e ao mesmo tempo ressoo as trombetas finais,
compreendo todas as línguas, todos os gestos, todos os signos,
tenho glóbulos de sangue das raças mais opostas.
Posso enxugar com um simples aceno
o choro de todos os irmãos distantes.
Posso estender sobre todas as cabeças um céu unânime e estrelado.
Chamo todos os mendigos para comer comigo,
e ando sobre as águas como os profetas bíblicos.
Não há escuridão mais para mim.
Opero transfusões de luz nos seres opacos,
posso mutilar-me e reproduzir meus membros como as estrelas-do-mar,
porque creio na ressurreição da carne e creio em Cristo,
e creio na vida eterna, amém.
E, tendo a vida eterna, posso transgredir leis naturais:
a minha passagem é esperada nas estradas,
venho e irei como uma profecia,
sou espontâneo com a intuição e a Fé.
Sou rápido como a resposta do Mestre,
sou inconsútil como a sua túnica,
sou numeroso como a sua Igreja,
tenho os braços abertos como a sua Cruz despedaçada e refeita,
todas as horas, em todas as direções, nos quatro pontos cardeais,
e sobre os ombros A conduzo
através de toda a escuridão do mundo, porque tenho a luz eterna nos olhos.
E tendo a luz eterna nos olhos, sou o maior mágico:
ressuscito na boca dos tigres, sou palhaço, sou alfa e ômega, peixe, cordeiro, comedor de gafanhotos, sou ridículo, sou tentado e perdoado, sou derrubado no chão e glorificado, tenho mantos de púrpura, e de estamenha, sou burríssimo como São Cristóvão, e sapientíssimo como Santo Tomás. E sou louco, louco, inteiramente louco, para sempre, para todos os séculos, louco de Deus, amém!
E, sendo a loucura de Deus, sou a razão das coisas, a ordem e a medida;
sou a balança, a criação, a obediência;
sou o arrependimento, sou a humildade;
sou o autor da paixão e morte de Jesus;
sou a culpa de tudo.
Nada sou.
Miserere mei, Deus, secundum magnam misericordiam tuam!

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Afonso Henriques Neto | Uma Cerveja no Dilúvio

“Que negócio é esse de poesia-magia? Bonsbocados de alquimia (introjetar/exsudar paisagens)? Inconsciente de cosmos? Sonhoso selvagem? Dor do imaginário? (Desconhecer é que nos delira?). Seja como for, ainda seguir com o melhor Rimbaud”. – Em Uma cerveja no dilúvio, Afonso Henriques Neto mostra que é muito mais do que um ícone da poesia marginal – e se consagra como uma das vozes mais singulares e originais da poesia contemporânea brasileira.
        Afonso Henriques Neto lança o seu  Uma cerveja no dilúvio  na terça-feira, 31 de maio, a partir das 19h, na Livraria da Travessa Leblon.  No mesmo evento, a 7Letras lança a novíssima revista Lado7 e os títulos de poesia Relógio de pulso, de Ana Guadalupe; Água para viagem, de Lorena Martins; Sessentopéia, de Charles Peixoto; Ramerrão, de Ismar Tirelli Neto e a segunda edição de A partir de amanhã eu juro que a vida vai ser agora, de Gregorio Duvivier.

Ouça Basta de poesia na voz do próprio poeta.

Basta de poesia

nuvens de cimento não pertencem à paisagem
ventos de granito em discursos descabelados
porque arte não é coisa de amadores
é matéria pra profissional mesmo
assim é melhor botar a juventude pra fora da sala
e do tempo
os jovens costumam delirar demais
pela arte
que no fim das contas é coleção de febres & abismos de transe
vulcões empedrados & fumo gelado pra velhos vagabundos
salvos do incêndio na galeria desesperançada

pois aqui só leva o prêmio quem não apostar porra nenhuma
ou quem mijar de tanto rir da cara
desses senhores que flutuam por entre acervos de museus
e colam maus poetas e artistas amigos em edições de luxo
mais literatura marqueteira nas grandes editoras & feiras
falando da arte como se fosse um empíreo
de fabulações fabulosas a mastigar
solenes voragens de ouro
& brinquedinhos semânticos com palavras estripadas
pelos profissionais das vanguardas
todos criticamente estupidamente bem penteados
em teorias ideologias midiáticas pulsantes
e vai se ver é tudo isso junto mesmo

no fundo a poesia está pouco se lixando
para o lixo que as cidades costumam empilhar
poesia que sempre é chamada para lavar
lençóis nebulosos de epidemias criminosas
mesmo se ninguém saiba que merda de poesia é essa
um áspero lautréamont no semear neblinas negras
(venha venha oh sublime silêncio constelado
para expulsar os demônios e limpar os escarros
desses delírios que vícios escamaram)

Jorge de Lima | Para Degolar o Chefe


Então não houve mais água porque os mananciais foram cortados
e o mal não consentia que as nuvens dessem de beber à vila.
E as forças inimigas eram de cento e vinte mil guerreiros,
e o chefe de seus capitães, sanguinário e forte.
Então a mulher mais bela entre os sitiados
pediu ao Senhor que lhe aumentasse a beleza
para que sua formosura fosse a sua grande força.
– Dai-me fortaleza, Senhor, para o perder!
– Dai-me formosura, Senhor, para o perder!
– Dai-me Sabedoria, Senhor, para o perder!
E depois se perfumou dos perfumes mais caros
e entrançou os cabelos e vestiu-se com os vestidos de gala,
e calçou suas sandálias,
e se ornou com joias do feitio de açucenas;
e a formosura que o Senhor acrescera
era sabedoria e era fortaleza
pois que é assim a formosura d´Ele!
E quando ela entrou na tenda para degolar o Chefe,
antes de decapitá-lo em defesa do Espírito,
a cabeça do Chefe estava perdida nele
e era diante dela um troféu do Senhor!