sexta-feira, 4 de março de 2011

Antônio Pinto de Medeiros


Filho de pais emigrados do Rio Grande do Norte, Antônio Pinto de Medeiros nasceu em Manaus/AM em 1919, mas retornaria ao Estado natal de sua família, onde teria relevante papel intelectual. Foi seminarista e formou-se em direito em 1950, pela faculdade do Recife, nunca chegando a exercer a profissão. De volta a Natal, atuou no magistério, no jornalismo e na literatura, publicando dois livros de poemas: Um Poeta à Toa (1949) e Rio do Vento (1952), nos quais expressava-se num verso livre, denso e de grande força imagética. Eleito para a Academia Norte-rio-grandense de Letras, renunciou por considerar-se “anti-acadêmico”. Nos anos 50 assinou com o pseudônimo de Torquemada – o famigerado inquisidor espanhol – a coluna semanal “O Santo Ofício”, no jornal Diário de Natal. Dono de um estilo irônico e mordaz, Pinto não hesitava em assinalar inconsistências e arrasar a maior parte da literatura então publicada no Estado, exercendo importante papel de crítico literário e chegando a ser conhecido como “o terror do intelectual medíocre”. Não obstante, valorizava e incentivava os novos em quem reconhecia talento, como Zila Mamede, que o considerava seu mestre. Conhecido na província pelo brilhantismo e despojamento, mudou-se para o Rio de Janeiro em meados dos anos 50, abandonando a literatura e dedicando-se à crônica futebolística, vindo a falecer nesta cidade no ano de 1970. [Márcio Simões] 

MINUETO

Bailam diante de mim o desejo e o tempo.
Mas o silêncio – luto fechado –
Acabou de sepultar um de seus mortos.
E aquelas ondas inquietas
Não viram a face parada
Nem o véu imóvel.
As sombras e os livros nem despertaram
Para o réquiem.
E até o céu é um deserto de cinzas.

ENIGMA NÚMERO 6

O tempo estéril pesa sobre os sentidos
Como a noite perdida e cinza.
Deixar cair o mármore os turíbulos
E esquecer os passos dos hadjis!
Lançar ao camarada a mistura de leite e sangue
E não sentir o hálito da carne!
Mas, sobretudo, não poder ver o rosto velado!

ELEGIA DE RAQUEL, A LOUCA

Não resistiu ao assalto das colunas de fogo
Que traziam, em galopes, as vozes das salamandras.
Debateram-se, em angústia, os braços súplices,
Enquanto a resina crepitante gritava: MORTE!

Donde vieram depois as paisagens confusas,
As melodias incertas e os risos sem alma?
Por que não queimaram as chamas as visões perdidas
E não a emudeceram ao diálogo com as sombras?

A fumaça envolveu o passado e o futuro
E as cinzas confundiram o êxtase e a vida
Numa oferta sem limites e sem sonhos.

Os discos prenderão, ainda, os olhos incendiados,
O amado impossível não virá. E a morte
Não manchará o seu vestido de virgem.

A DÁHLIA BRANCA

Pare. Nem pouse o pé direito.
Imóvel, assim, sob o peso do tempo.
É este o sétimo dia
E as vozes ficaram com os que nem virão.
Arrogante e frio o silêncio, bem sei,
Caminha e caminha sobre a pedra nua
Estéril e virgem, morta, talvez.
Esqueça. Mate os sentidos.
Prenda a fantasia que a mortalha
Foi o pesadelo e nada mais.
Hoje é o sétimo dia. Pare.
Imóvel, assim, sob o peso do tempo.

DELÍRIO

Despertaram o silêncio
E ataram-no pés e mãos.
Trouxeram as cinco dimensões
E Portinari e os painéis.
Mergulhou na estrela menor
O olho que sangrava.
Transparente transparente
A mulher que não devia ter vindo
E foi parar na fogueira
Por ter desejado o anjo da guarda
(Perdoai-lhe, Senhor!).
Rondó alla turca arlequinando
O miserere mei, Deus.  
E o pó embalsamando a alma alquebrada
Que dormira sozinha no anfiteatro abandonado.
E o bailado das três flores secas, secas.

ELEGIA DA CARNE DE CARMEN

Tiraram Carmen do ventre das ondas
Numa tarde como outra qualquer.
Um resto de vida sem cor era Carmen
Quando a tiraram do ventre das ondas.

Onde estão agora os passos perdidos,
Os olhos incertos e os gestos de afago
Vendidos à toa, por preço qualquer,
Na feira livre dos passos perdidos?

Que será feito das mãos indecisas,
Dos seios, das tranças, dos lábios, do ventre,
Da carne de Carmen que o mundo explorou

No fogo das lutas em leitos de amor?
Por que ressurgir no vale da morte,
À busca da alma, como outra qualquer?

ENIGMA NÚMERO 3

Cairá das mãos indecisas
Nas cinzas mortas.
E a maldição descerá, talvez,
Na estrela suicida ou na nuvem que sangra,
Distante dos vagabundos,
Distante dos renegados,
Alheia e bêbeda como a sorte.

Cairão as mãos vazias
Nas cinzas mortas.
E a maldição descerá, talvez,
No vento epiléptico ou na luz boêmia,
Distante dos vagabundos,
Distante dos renegados,
Alheia e bêbada como a sorte.

Cairá dos olhos fartos
Nas cinzas mortas.
E a maldição descerá, talvez,
Nas cores estéreis ou nos sons sem abrigo,
Distante dos vagabundos,
Distante dos renegados,
Alheia e bêbeda como a sorte.

Cairão os olhos podres
Nas cinzas mortas.
E a maldição descerá, talvez,
Nas horas lúbricas ou no espaço iníquo,
Distante dos vagabundos,
Distante dos renegados,
Alheia e bêbeda como a sorte.

SONETO À TOA

A morte há de vendar-me os olhos rebelados
E me transformará, com um riso de mofa,
Numa velha caricatura boschimana.

Passarei do ser ao não ser e o encantamento
De outras paisagens vai fazer de mim
Um confuso turista de outras vidas.

Plantar-me-eis pobre e nu como nasci.
E ao primeiro dia voltarei, com o tempo.
As chuvas serão pródigas e a terra avara
E sábia não fará brotar a semente inútil.

Nascerão flores e os ciprestes vetustos
Hão de cumprir a missão de matar o tédio
Da imobilidade e do silêncio atroz,
Embora eu desejasse música para violinos.

ATO DE FÉ

Creio na infinita procura
E nos caminhos ardentes
Creio no mistério da carne
E no limbo das ideias
Creio no silêncio sem fronteiras
E no tumulto das sombras
Creio na mágica do tempo
E na divindade das forças
Creio no trono de Judas
E na redenção dos anjos caídos.

POEMA SEM TÍTULO

E mesmo que a música se extinga,
Mesmo que para todo o sempre ela se extinga
(que eu não veja quebrados os alaúdes e as harpas
nas águas dos rios que por Babilônia vão),
Quando desaparecerem os sinais de sua passagem,
Quando o fim e o princípio se confundam
Num abraço de morte,
Mesmo que a luz se extinga,
Mesmo que para todo o sempre ela se extinga,
Eu voltarei peregrino do mesmo caminho.

PURIFICAÇÃO

Eu quero a pedra em fogo.

Caminho inverso ao do profeta.
Salmos escritos na cinza
De verdades antigas e mortas.
Haverá êxtases e uns
Adormecerão sobre as idades passadas.
Outros sonharão com o fim
Repulsa entre corpos e almas.
De tudo ficará uma grande ausência
Ou uma infinita lembrança.
Mas escaparão as dimensões da pedra em fogo.

ENIGMA NÚMERO 2

Virão nas horas completas
Em caravana sinistra
Trazendo capuzes negros
E albornozes de mouros
Pelos caminhos estranhos
Que a fantasia sonhou
Para um conflito de enigmas

Os olhos débeis e úmidos
Serão esferas perdidas
Dentro de um mundo julgado.
Não criarão as paisagens
Da infinita promessa
E tombarão as sementes
Em leitos de pedra e espinhos.

Virão nas horas completas
Entre harmonias soturnas
De blasfêmias e de salmos
E o outro canto perdido
Envolto em cinza dos ídolos
Será o incenso sagrado
Do rito negro e fatal.

Entre turíbulos vivos
E flores do sacrifício
Buscarão as mãos sacrílegas
A pedra da redenção
E haverá cruzes e máscaras
Entre relíquias e fumo
Alimentando o braseiro.

E os olhos débeis e úmidos
Serão esferas perdidas
Dentro de um mundo julgado.
Não criarão as paisagens
Da infinita promessa
E tombarão as sementes
Em leitos de pedra e espinhos.

ENIGMA NÚMERO 5

Parados todos os relógios
E o espírito aberto ao mundo.
Por onde andará a inocência
Cansada da face rugada de Deus?
Sufocada pelo tempo
Ou em diálogo com a pedra surda
Da colina de expiação?
Parados todos os relógios
E o espírito aberto ao mundo.
Não virão à luz os germens,
Mas para onde irá minha voz,
Quando caminhar a Damasco,
Sem violentar os olhos para o sacrifício?

POEMA DO TRANSFIGURADO

E se nada acontecer?
Se os rostos deformados e os sentidos mendigos,
Os olhos famintos e as mãos que interrogam,
A carne que sangra desejos
E afoga a regeneração,
Se transformarem na cinza das ausências
E a dúvida acenar, ainda,
Como um profeta maior?
Se o silêncio pesar, como o remorso,
Sobre o grito de angústia
E a esfinge recolher o pranto e o riso do transfigurado?
Se abortarem todos os sonhos
E ele purificar os lábios no próprio sangue
E nada acontecer?

SEM VOS CONTAR O FIM

Meus olhos se fecharão como todos os olhos.

Cruzem-me as mãos.
Quero posar para a morte.
Mas não vos direi “mais luz”
Nem haverá êxtases, eu vos juro.
A paisagem infiel, lenta, confusa,
Será a cinza sem cor, sem cor.
Apenas a cinza sem cor.
Mas antes que venha o silêncio,
Trazei-me o intérprete.
Porque há o nada e o sempre.
Mas trazei-me o intérprete
Antes que venha o silêncio,
E antes que eu vá, como irei,
Sem vos contar o fim.

GOTAMA

Rasga o Apocalipse e abre o Eclesiastes.
Furta os olhos às formas
E afoga os pesadelos de tuas noites ardentes
À sombra da árvore do bem e do mal.
Apaga teus mistérios
E extirpa a cera incolor de teus cabelos candelabros.
Não digas “e depois?”.
Sê tu e não definas.
Não te iludas com o sentido do coração
Nem penses de que lado pulsa.
Acautela-te de tua mão direita.
Sê Sócrates antes que João Batista.
Pisa os símbolos e ri.
Imita o mocho e voa em curvas.
Não terás o terror do suor frio.
Fecha o livro:
Não precisas entoar o salmo de todos os pecadores.

METAFÍSICA

Bem pode ser a chave do mistério
A voz do interprete.
Bem pode ser tudo muito claro.
Talvez esteja dançando ante meus olhos
Talvez nela mergulhem meus sentidos
Talvez.
Mas eu sou o homem escravo
Com um único pecado.

IDEAL

A arca continuava sobre as ondas,
Escrava e só como um brinquedo de Deus.
Tentaram gravar em cores
Uma paz impossível.
E a ave cortou o espaço tonta e livre,
Enquanto a arca, escrava e só,
Dançava tonta sobre as águas.

ILUSKA, O SONHO E A MONTANHA

Reviver entre canções desconexas e cansada luz
O sortilégio febril e o rastro de sangue
Da que já é o fantasma intemporal e vago
E para sempre o anêmico e rígido silêncio.

Recriar entre névoas mansas e sons indecisos
O ritmo ardente e os caminhos de aventuras
Da que já é a longa e indecifrável ausência
E para sempre a parda e descarnada mudez.

Jamais o céu baixando sobre o bailado em fogo
Que surgiu da neblina para o palmo quadrado da montanha
Olhados de sargaços os cabelos deslumbrados de manhã.

Jamais o mar estendendo os braços suplicantes
Para o brasileiro em que louca dança o louco sonho
Um raio de sol na face e uma estrela na mão.

ENIGMA NÚMERO TREZE

Presença inquieta sobre a noite imóvel
E vã. Sons em delírio sobre o mármore
Matam o silêncio que nasceu das águas
Para afogar o esquema em desespero

Da última canção – mensagem extrema
De desejo e de dor, rosa perdida
Entre as mãos deserdadas que perseguem
A sombra morta e fria dos limites –

Desfalecida em eco, imersa em sangue,
Sem sepultura, a única palavra
Fecundada na treva. Dançam loucos

Demônios líricos sobre a cinza morta
E olhos sem luz contemplam entre soluços
A face virgem e rígida do tempo.

ENIGMA NÚMERO QUATORZE

No mistério da hora nona
Cresce a sombra no silêncio
Entre os anjos da manhã
A nuvem em pânico e a pedra
Sem infância que entreveem
Negros sonhos inumanos
Ouvirão asas soluços
E a voz de Deus no exílio.

Brancas estátuas de sal
Nas horas de febre e sangue
Beijarão neutros demônios
Vindos da última aurora
Para a vertigem da noite
Onde os leitos sem limites
Fecundarão a esfinge
Entre antífonas e chamas.

Tristes flores do pecado
Tombarão decapitadas
Nas cinzas do desespero
E das máscaras sonâmbulas
Inconsúteis e cansadas
Nos rios do paraíso
Correrão soturnamente
Sons de lágrimas e salmos.

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