sexta-feira, 4 de março de 2011

Alcir Pécora – “Escrever não é preciso”

"15. Paradoxalmente, uma maneira de adiar a compreensão simples da absoluta não necessidade de escrever é pretender humildemente que escrever seja justamente apenas mais uma atividade entre outras, e o escritor, alma singela, apenas mais um homem comum, por mais coquette que se apresente em seus gestos e maneiras.

16. Chamo a isso especificamente “pretensão”, e não, por exemplo, “desejo”, porque não há um só sujeito que afirme que escrever seja uma coisa qualquer, que saiba também tirar a consequência óbvia dessa afirmação: a de que seja uma atividade tonta, indiferente e desprovida de valor pessoal ou público, como a maioria absoluta de todas as outras atividades comuns e quaisquer.

 17. Se não se tratasse de pura afetação arrivista, o escritor pretendente a gente comum teria de concluir que a inserção da literatura no patamar da vida média se traduz como uma simples rotina, um automatismo, cujo pressuposto (necessário, portanto) é apenas a adesão ao lugar-comum. Enquanto tal, é basicamente forma de alienação da vontade própria em favor, digamos, do ganha-pão, o que definitivamente nada tem a ver com um projeto de criação artística, autocriação pessoal ou intervenção pública por meio da literatura produzida.

18. O resultado, pois, da pretensão da escrita como atividade ordinária é a de que escrever não apenas não constitui autores, enquanto criadores, como, ao contrário, submete-os rapidamente ao movimento da prática tosca e maquinal de reprodução do mundo no estado de merda no qual existe.”

 Do crítico Alcir Pécora, em texto raivoso publicado na revista  Sibila: O Inconfessável: escrever não é preciso.

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