quarta-feira, 6 de abril de 2011

Octavio Paz | O Cântaro Quebrado


O CÂNTARO QUEBRADO
Octavio Paz

O olhar interior se desdobra e um mundo de vertigem e chama nasce sob a face do que sonha:
sóis azuis, verdes redemoinhos, bicos de luz que abrem astros como romãs,
girassol solitário, olho de ouro girando no centro de uma esplanada carbonizada,
bosques com sons de cristal, bosques de ecos e respostas e ondas, diálogo de transparências,
vento, galope de água entre os muros intermináveis de um desfiladeiro de azeviche,
cavalo, cometa, foguete que se fixa justamente no coração da noite, plumas, olhos-d’água,
plumas, súbito florescer das tochas, velas, asas, invasão do branco,
pássaros das ilhas cantando sob a face do que sonha!

Abri os olhos, levantei-os até o céu, e vi como a noite se cobria de estrelas.
Ilhas vivas, braceletes de ilhas flamejantes, pedras ardendo, respirando, cachos de pedras vivas,
quanta fonte, que claridades, que cabeleiras sobre as costas escuras,
quanto rio lá em cima, e esse som remoto de água junto ao fogo, de luz contra a sombra!
Harpas, jardins de harpas.

Mas ao meu lado não havia ninguém.
Só a planície: cactos, acácias, pedras enormes que estalam sob o sol.
Não cantava o grilo,
havia um vago cheiro de cal e sementes queimadas,
as ruas da vila eram riachos secos
e o ar se abriria quebrado em mil pedaços se alguém houvesse gritado: quem vive?
Colinas peladas, vulcão frio, pedra e arquejo sob tanto esplendor, seca, sabor de poeira,
rumor de pés descalços sobre a poeira, e o terebinto no meio da planície como uma nascente petrificada!

Diga-me, seca, diga-me, terra queimada, terra de ossos remoídos, diga-me, lua agônica,
não há água?
há somente sangue, somente poeira, apenas pegadas de pés desnudos sobre os espinhos,
apenas farrapos e comidas de insetos e torpor sob o meio-dia ímpio como um cacique de ouro?
Não há relinchos de cavalos à margem do rio, entre as grandes pedras redondas e reluzentes,
no remanso, sob a luz verde das folhas e os gritos dos homens e as mulheres banhando-se à aurora?
O deus-milho, o deus-flor, o deus-água, o deus-sangue, a Virgem,
todos estão mortos? se foram, cântaros quebrados à margem da fonte cega?
Só o sapo está vivo?
Só reluz e brilha na noite do México o sapo esverdeado?
Só o cacique gordo de Zempoala é imortal?

Estendido ao pé da divina árvore de jade regada com sangue, enquanto dois jovens escravos o abanam, nos dias das grandes procissões frente às pessoas, apoiado na cruz: arma e bengala,
em traje de batalha, o rosto esculpido em sílex aspirando como um incenso precioso o fumo dos fuzilamentos,
nos fins de semana em sua casa blindada junto ao mar, ao lado de sua querida coberta de joias de gás néon,
Só o sapo é imortal?

Eis aqui a raiva verde e fria e a sua calda de navalhas e vidro cortado,
eis aqui o cão e seu uivo sarnento,
a agave taciturna, a palma e o cacto candelabro arrepiado, eis aqui a flor que sangra e faz sangrar,
a flor de inexorável e cortante geometria como um delicado instrumento de tortura,
eis aqui a noite de dentes compridos e olhar afiado, a noite que despela com uma pederneira invisível,
ouve os dentes se chocarem uns contra os outros,
ouve os ossos esmagando os ossos,
o tambor de pele humana golpeado pelo fêmur,
o tambor do peito golpeado por um calcanhar furioso,
o tam-tam dos tímpanos golpeados pelo sol delirante,
eis aqui a poeira que se levanta como um rei amarelo e tudo desenraiza e dança solitário e se desmorona
como uma árvore em que secaram as raízes, como uma torre que cai de um só golpe,
eis aqui o homem que cai e se levanta e come poeira e se arrasta,
o inseto humano que perfura a pedra e perfura os séculos e carcome a luz,
eis aqui a pedra quebrada, o homem quebrado, a luz quebrada.

Abrir os olhos ou fechá-los, tudo é igual?
Castelos interiores que incendeiam o pensamento para que outro mais puro se levante, apenas fulgor e chama,
semente da imagem que cresce até ser árvore e faz estralar o crânio,
palavra que busca uns lábios que a digam,
sobre a antiga fonte humana caíram grandes pedras,
há séculos de pedras, anos de lajes, minutos densos sobre a fonte humana.
Diga-me, seca, pedra polida pelo tempo sem dentes, pela fome sem dentes,
poeira moída por dentes que são séculos, por séculos que são fomes,
diga-me, cântaro quebrado caído na poeira, diga-me,
a luz nasce esfregando osso contra osso, homem contra homem, fome contra fome?
até que surja ao fim a faísca, o grito, a palavra,
até que brote finalmente a água e cresça a árvore de largas folhas de turquesa?

Há que dormir com os olhos abertos, há que sonhar com as mão,
sonhemos sonhos incansáveis de rio buscando seu canal, sonhos de sol sonhando seus mundos,
há que sonhar em voz alta, há que cantar até que o canto crie raízes, troncos, ramos, pássaros, astros,
cantar até que o sonho engendre e brote encostado ao que dorme a espiga vermelha da ressurreição,
a água da mulher, o manancial para beber e ver-se e reconhecer-se e recobrar-se,
o manancial para saber-se homem, a água que fala sozinha na noite e nos chama com nosso nome,
o manancial das palavras para dizer eu, tu, ele, nós, embaixo da grande árvore vivente estátua da chuva,
para dizer os pronomes formosos e reconhecer-nos e sermos fiéis a nossos nomes
há que sonhar para trás, à fonte, há que remar séculos acima,
para além da infância, para além do começo, para além das águas do batismo,
derrubar as paredes entre o homem e o homem, juntar de novo o que foi separado,
vida e morte não são mundos contrários, somos um só talo com duas flores gêmeas,
há que desenterrar a palavra perdida, sonhar para dentro e também para fora,
decifrar a tatuagem da noite e olhar cara a cara o meio-dia e arrancar-lhe sua máscara,
banhar-se em luz solar e comer os frutos noturnos, soletrar a escritura do astro e a do rio,
recordar o que dizem o sangue e a maré, a terra e o corpo, volver ao ponto de partida,
nem adentro nem afora, nem acima nem abaixo, no cruzamento de caminhos, onde começam os caminhos,
porque a luz canta com um rumor de água, com um rumor de folhagem canta a água
e a aurora está carregada de frutos, e o dia e a noite reconciliados fluem como um rio manso,
o dia e a noite se acariciam longamente como um homem e uma mulher enamorados,
como um só rio interminável sob arcos de séculos fluem as estações e os homens,
para além, no centro vivo da origem, para além de fim e começo.
Tradução: Barbosa da Silva

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