Desenho de Daniel Liberalino |
Recebo uma ligação. É o Dr. Klaus. Marco com ele uma cirurgia para remoção do meu superego. "Aqui está", diz, balançando meu superego imerso num líquido conservante vermelho dentro de um tubinho. Era mesmo um simpático pedacinho de encéfalo. "Amarrei essa corrente para poder usar como chaveiro, se quiser". Pensei em doar para uma Instituição de Auxílio ao Genocida Desempregado, acabei deixando na estante como decoração. Encontrei o tubo vazio ao lado do indivíduo obeso de portentosa barba que dormia nu sobre meu sofá de camurça, ao lado de duas prostitutas, ao lado de várias coisas não identificáveis, ao lado de poças de vômito, na manhã seguinte a uma comemoração em minha casa. Fui até o mencionado indivíduo, caminhando sobre um tapete de coma alcoólico que agora adornava a minha casa como um bucólico pomar genital. Deveríamos sempre nos esquivar de contatos malsãos. Acordei o misterioso organismo e perguntei se ele lembrava de ter bebido o meu superego. Conforme explicou, encontrara o frasco entre as mini-garrafas de martini e absinto, então bebeu o líquido vermelho e cuspiu fora "aquele treco nojento que tava boiando lá dentro". "Aquele treco que estava boiando lá dentro", expliquei, "era o meu superego". "Vai se foder", disse, voltando a dormir. Então fui até a cozinha para organizar – pelo critério de pertinência cultural a etnias devastadas, em ordem crescente de sobreviventes – os meus bibelôs magnéticos na porta da geladeira, e vi um sapo que me encarava ali parado, no chão. Fitei por alguns minutos aquela protuberância anfíbia da realidade, dando tempo necessário para o input da retina ser aceito pelo cérebro, arquivado e processado, então devolvido com um carimbo de “RECUSADO” pelo córtex visual – e um post scriptum: “Estou indo tirar férias num spa em Puerto Rico”. Aí uma mosca pousou à frente do sapo. Este fascinante anfíbio anuro automaticamente disparou sua língua, a qual se deteve hesitante antes de alcançar a presa. Ficou congelada naquela posição.
"De que ponto de vista metafísico - presumindo que uma tal premissa poderia com efeito proceder - seria eticamente justificável o reprocessamento de nutrientes deste inseto, visando meu benefício exclusivo, todavia às custas de sua vida?", disse uma voz advinda do interior do sapo. "Ora, excluindo do conjunto de 'axiomas' de um suposto sistema ontológico quaisquer imperativos categóricos ou princípios governantes universais, restaria porventura a possibilidade de alguma forma de 'igualitarismo ético imanente' para as moscas, em que a Imanência como um todo corresponderia doravante a uma unicidade estática, não-kinética; um estado de absoluta imutabilidade platônica singularista? Isto seria contraditório com a assunção inicial de ausência de princípios universais, quando não um mero artifício ex nihilo, é claro, mas-".
"Superego, é você?", interrompi.
Levei o sapo para fazer uma endoscopia, no mesmo hospital aonde levei para fazer lavagens estomacais comigo tantas garotas, mulheres que acendem a paixão platônica em minha efêmera glande; espécimes fêmeas do homo sapiens que, como uma chama ardente, um furor replicativo, despertam-me o Clark Gable darwinístico interior.
- Minha pequena flor de lótus gastricamente desapossada, vamos àquele outro endoscópio. O endoscópio do amor.
Por um golpe de sorte, meu superego havia sido apenas parcialmente digerido. O sapo retratou-se pelo vexaminoso mal entendido, e nos afiançou que, antes de ser acidentalmente transformado em anfíbio por um professor de tai chi chuan durante uma breve experiência homossexual numa piscina térmica natural do Tschyigen Grand Hotel (Alpes Suíços), era um bem-sucedido microempresário do ramo de equipamentos para auto-imolação. Eu lhe disse “Ei, por que não deixamos isso tudo pra trás e pegamos uma sauna?”. “Eu gostaria de ir com você, meu amigo, mas a minha espécie apenas sobrevive em climas temperados, e a mais leve variação de calor faria o meu pequeno corpo explodir, ou perder todos os privilégios na divisão de bens em caso de divórcio”. Lambeu os olhos com a língua, sutilmente. “Isso seria terrível”.
Assim, esquecemos a sauna e combinamos de nos encontrar na terça, para testar os limites neurofisiológicos do isolamento, privação de sono e abuso psicológico extremos. Marcamos de ficar numa prisão em Cabul, Afeganistão, para onde iríamos disfarçados de terroristas.
Para ler esse e outros contos que deixariam William Burroughs orgulhoso, acesse: Como ajustei minha vida social no inferno, blog do mossoroense Daniel Liberalino. Ou baixe o livro dele AQUI.
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