segunda-feira, 30 de maio de 2011

Antonin Artaud | A Anarquia Social da Arte

A arte tem um dever social que é o de dar saída às angústias de sua época. O artista que não tem ocultado o coração da época e que ignora que o artista é um bode expiatório, cujo dever consiste em magnetizar, atrair, trazer sobre seus ombros as cóleras errantes da época para descarregá-la de seu mal-estar psicológico, esse não é um artista.

As épocas têm, como os homens, um inconsciente. E essas partes obscuras da sombra de que fala Shakespeare têm também uma vida sua, própria, que é preciso extinguir.

Para isso é que servem as obras de arte.

O materialismo de nossos dias é na realidade uma atitude espiritualista, posto que nos impede de alcançar em substância, para destruí-los, aqueles valores que escapam aos sentidos. O materialismo chama “espirituais” a esses valores e os descuida, e eles envenenam entretanto o inconsciente de uma época. Não é espiritual nada que possa ser alcançado pela razão ou pela inteligência.

Temos meios de luta, mas nossa época está a ponto de perecer porque se esquece de empregá-los.

A revolução russa, em seus começos, fez uma verdadeira carnificina de artistas, e todo o mundo se levantou contra esse menosprezo dos valores espirituais que pareciam significar os fuzilamentos da revolução russa.

No entanto, olhando melhor, qual era o valor espiritual dos artistas fuzilados pela revolução russa? Em que manifestavam suas obras, escritas ou pintadas, o espírito catastrófico dos tempos?

Os artistas são responsáveis, hoje mais do que nunca, pela desordem social de sua época, e se os artistas tivessem sentido verdadeiramente sua época, não teriam sido fuzilados pela revolução russa.

Pois em todo sentimento humano autêntico existe uma força rara que impõe respeito a todo o mundo.

Durante a primeira Revolução francesa se cometeu o crime de ter guilhotinado André Chenier. Mas em uma época de fuzilamentos, de fome, de morte, de desespero, de sangue, e quando nada menos que o equilíbrio do mundo era o que estava em jogo, André Chenier, perdido em um solo inútil e reacionário, pôde desaparecer sem perda nem para a poesia nem para seu tempo.

E os sentimentos gerais, eternos de André Chenier, se os teve, não eram tão gerais, nem tão eternos, como para justificar sua existência em uma época em que o eterno desapareceria sob inúmeras preocupações particulares. A arte, justamente, deve tomar as preocupações particulares e elevá-las à altura de uma emoção capaz de dominar o tempo.

Mas nem todos os artistas são capazes de chegar a esta espécie de identificação mágica entre seus sentimentos próprios e as cóleras coletivas do homem.

Da mesma maneira que nem todas as épocas são capazes de entender a importância do artista e a função de salvaguarda que o artista exerce a respeito do bem coletivo.

O menosprezo dos valores intelectuais está na raiz do mundo moderno. E esse menosprezo esconde, na realidade, uma profunda ignorância da natureza de tais valores. Mas eis aqui uma coisa que não devemos nos esforçar por fazer entender em uma época que, do lado dos intelectuais e artistas, produz uma grande proporção de traidores, e que, do lado do povo, tem engendrado uma coletividade, uma massa que não quer saber que o espírito, isto é, a inteligência, é que deve guiar a marcha do tempo.

O liberalismo capitalista dos tempos modernos tem relegado os valores da inteligência ao último plano, e o homem moderno, posto ante as quantas verdades elementares que acabo de assinalar, atua como uma besta ou como o homem enlouquecido dos primeiros tempos. Espera, ao se preocupar com estas verdades, que se convertam em atos, que se manifestem por terremotos, fomes, guerras, quer dizer, pelo estrondo do canhão.
Tradução de Lucas Fortunato (lucasfrm@bol.com.br)

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