terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Sopa d'Osso - Poemas da Antologia Sol Negro

Ilustração de Binho Duarte

DE LAMELAS MARVÓTICAS

DE BELLO CHRISTIANE

Já contaram sobre civilizações soterradas,
Apenas um escombro imaginário nos confins
Dos quadros manifestativos, desmemoriáveis!
Já confabulamos sobre liberdade e revoluções!!
Quantas guerras narradas sem espanto,
Embelecidas por nobres e raras palavras!
Mas urgência urgentíssima se faz esta mais:
Haja apego às palavras que viajam d’além-mente
Inté questas manos esqueléticas, rochedos,
Mãos impuras, gesticulatórias obscenas, por ser
Vertido à noite, tornado mendigo à noite,
Goliardo fixo, perenizado de abismos e afãs!
A mão canhota segura o berro e a dor,
Perfeita refazendo os estragos segue
Rabiscando questo amparo solo inerte.
Ó regina sapiência! Distenda-me os dáctilos!
Canhestra mano distendida liricoide,
A destra mão domina fácil os escritos.
Assim o poliestilicissismo de evidências
Pensando a bel guerra engendrar
Num hermetismo espremido reescreve-se
A perenosa batalha do corposãomanamente.
Hajam cantares aticistas e afazeres solícitos
A clarear os descompassos dessas inermas cifras!


O ESTIO E A MEMÓRIA

Aroma de gramas aparadas e o cheiro de terra revolvida
A trair na memória que ‘té serenos remancham às terras do Retiro.
O astro que deu-nos vida, ceifa castigos,
Fomes encardem frágeis ossadas do que, possível, foram seres,
Hoje quase sombras tostadas, quase cinzas
Mascando cactos e bebendo lamas.

Enquanto noutros lados, aqui mesmo, onde de bucho cheio e suando minerais,
Não nos antojamos das sedes sociais nesta saciedade.


A COMÉDIA FINDA

Soam-me lamúrias, soam-me lágrimas
Tanto sorrir desgraças, comiseráveis
De fáceis alegrias em tempos de choro,
Em tempos de dentes a ranger...
Melhor seria emudecer, calar as faces
Impostas, cerrar os olhos lamentos,
As bocas em escancaros de alvos dentes:
Iras falsificadas, ódio devidamente encoberto...
Invertam-se as máscaras e, logo logo,
A barbárie, o depravamento, o destruir sonhos;
Desnudados das caras enrugadas ao alto,
Despencam os olhares, as bocas emurchecem,
E, onde antes houvera só sorrisos em estrondos,
Um trêmulo murmúrio, escuro gemido
E o crepitar de dentes refazendo a cena.


UM NÃO-CANÇÃO

Não, não abro aqui proposta promissora,
Já prometido fora erguer do sepulcro
Tantos bilhões de humanos aguerridos.
Revele-se que não há vida após morte;
Há vida aos vivos, aos mortos, morte;
Movimentam-se os vivos, os mortos se consomem.
Mas digo que nunca ninguém conseguiu saber
Quando vida e morte foram vistas assim
Tão solidárias!

Não, não proponho um canto clamoroso,
Só pretendo que o descante toque ouvidos.
Foram-se a muito as aladas palavras
Dar-se como gota em recipiente transbordante;
Logo toca a massa tremulosa, um bafejo,
Soma-se a partícula ao todo circundante;
Rolando em mesmas proporções, desprende
A correr, uma parcela idêntica e nova.


JÓ-ZÉ IMAGINANDO DIALOGAR COM DEUS

Pois o que vejo em meus irmanados,
Tão agregados quant’eu os vejo sou;
Se vejo que me veem com bons olhos,
Assim igualzinho me vejo a Eu; sendo
O que escrito inter linhas, o Eu mesmo
Que os meus manos mesmos somos.
Assim dizendo àqueles que fraternos
A mim mesmo digo-me, não me vendo Eu
O outro que somos, mas sendo apenas
Eu o mesmo outro, o mesmo mano,
Assim dizendo a mim me vejo o outro
Falando, e respondo sempre: - Irmão,
O que em mim vedes não me sou apenas,
Sou o que vós mesmo és, quase nada
À pena, sermentes do mesmo grande Eu!
Se é mal o que sempre vejo,
Mal nos somos constantes inertes
Boiadores no execrável das fezes
Do abismo! Não! Que não sejamos,
Pois por que queria Eu me ver
Atolado em porcarias, se o Eu
Donde parto indolo, a mim mesmo
Constante indica que se vejo bem
Mesmo o mal qu’outro implica,
Assim mesmo nos iremos perfeitos!
Não entendamos acabados, mas plenos
Planadores dos ideais humanos!

“- Eu sou, e te obrigo a escrita!
Publicai o que às tuas mãos
Movo, o que à tua mente indico,
O que aos sentidos teus inundo!
Certamente não és um vaso insólito,
Sim que és dos filhos meus um meritório!”.


JÓ-ZÉ IMAGINANDO AINDA

O que vejo de primeiro
São as marcas rafadas pela vida:
Um dente faltoso ou empenado,
Uma vistosa cicatriz,
Um tom tão fanho, verbo tão tosco;
E ninguém vejo com muita simplicidade:
Nem aleijos, nem inutilizações, não,
E não os caducos, os maltrapilhos,
Ou crianças gordas de solitárias;
São todos impressionantes,
E poderosos únicos, donos de maior dignidade;
São maiores e mais importantes
Que todos os títulos, que-fazeres
E bajulações...


BEBO POR BEBER, FUMO POR FUMAR,

Mesmo havendo aí só mera flexão verbal,
Fumo e bebo porque existo
e isso faço
- Conto uma lenda formativa
De época remota não tanto
Em que cartinhas davam novas
Além Atlântico que diziam
De povos que bebiam fumos
E sorviam mofos até caírem tortos
Ou, honradez, vomitarem tudo
Para tornar logo à beberragem;
E isso na maior simplicidade,
Sem ser bem nem malvadeza,
Não um vício combatido e tolerado,
Apenas o estar vivo, existindo a beber
E a oscilar sem base às pernas,
A vomitar muitíssimo e com gosto...
Vomitar, digo: a falar sem que haja haver,
Nem sentidos empolados, nem gagueiras,
Só os irmãos unidos a se rirem da droga
Que é o bronco mundo dos sentidos!


DE DOMINGOS E PASQUELAS

Pensemos... melhor: Digamos,
Talvez: Pensemos mais... quer dizer:
Pensemos apenas...
- Eis que na terra do poeta
Só sorrisos moram, porém não ouvidos...
Abdicar dos surdos-cegos, assim
Despensemos...
Pensemos, melhor, estejamos
Em sintonia: ligados... quer dizer:
Apenas vivos...
- Quando já os viajantes, por terras
Estrangeiras, não mais se saúdam
É sinal certo certo de guerras justas...
Não ligueis que sejam guerras...
Vivamos... melhor: bibamos,
Pois o cálice das dores é já pleno,
Eis pois chegado a hora
De tempos por tão longo esperados...
A hora... melhor: pensemos!


SOBREPOSTO AO NADA

Um irmão, cigano poeta,
Na folha branca cantou de índios
Iniciações de mudança, rito
Cantado assim segundo des-lembro:
- “Olha o luz olha o alvo
Olha a sol olha a lua,
Tresolha o sete-strelo.
Fala mansa à lua clara
Aquecidos solações
Mákánàkà bésàrè uê ô!”
Enpós o altivo, vermelho
Chefe dos gípcios, declarou-me
Príncipe... dispensei o adulado
Pré-penso a embolar que:
Melhor servo ser à casa real
Que deste mundo ser primado!


DE TRILOGUS

I - DESPERTO TORTO

Pois, poucas vezes que me sinto
Realmente vivo, fechados os olhos,
A imagem que de mim mesmo guardo
É a de um bonzo tosado
Vestindo linhos já não tão brancos...

II - MORTO DORMINDO

Pois vezes outras e talvezes
Aqui estando, arregalado de sustos,
Há dinheiro em meus poucos bolsos
E nos vestimos de nada...
...Obrigados!

III - TONTO LOUCO

Ia a lua, ia, vixe! Êita!
A lua balança oca,
A lua branca e suja,
Olha lá vai lái vem a lua!


YGARAPÉ MA’ ENDWASÁBYPE

Vai sereno vai aquele fio
D’água fria entanto turva.
Vai ganhando vai outros fios,
D’água que em queda acresce
Gota a gota se avoluma.
Vai correndo vai esse fio
D’água sempre turva.
Velho como ia vai o fio
D’água e se perder no abismo.
Ganha vida e muito brio
O fio d’água simples simples.
Vai sereno vai este fio simples,
Faz-se em mínimo o non-plus-ultra.
Vai sereno vai aquele fio
D’água simples, turva e fria.


“SEPTIMA DIE”

Neste dia fabuloso em que o de tudo obrador
No ócio gerador mergulha livre-pássaro
E sonha-se sonhado em possibilidades infinitas,
E sabe-se infinito nessas possibilidades:

Este dia simples...
É dia de descanso,

a vida eterna dos infinitos mergulhos.

E eu... mirando o mar por sob meu assomo,
descanso o ócio de meus dias todos neste dia.


DE NOVO, A ATLÂNTIDA

Há uma terra ensolarada em formação
No não-lugar de nossas tementes mentes;
Porto de todos, presente, imagem viva.

Suas imensas alamedas assimetricamente cortam
Quarteirões de paixão,

Todas a o uno ponto convergindo;
Radial ponto onde suntuoso luz o templo,
A praça de esplendor e de juízo.


PROMETEU!?

-Brasil: queimadas quase simultâneas
traçam o mapa da ilha crescente... às avessas.
Júpiter pulverizado de cometas
Quinze graus e um pouco lá a frente... quase Vésper.
Furacões na Novíssima Babilônia
E presentes explosivos aos Muhhamed,
E prejuízos duplicados em flamas, no limite humano
Simultâneos:
- Brasis; cerca de quatro milhões
de humanos de outras humanidades... serenados.
- E ao termo: guerras sem ter nem pra que
contagiam celerados e celebrados... morte em festa.
- E o ponto afluente: quem terá atirado
De primeiro, de primeiro à derrota... rolam.
E dominós...em cascatas.

- Tudo visto da cela preta
Pelo quadrado de luz
Que encandeia ao teto.

“- Você tem que conhecer a cela preta (...)
Você tem que carregar pedra pesada
Nessa cabeça raspada pra deixar de ser... ladrão!”
- ...

- Vênus e Júpiter enamorados pasmam...
- ...


ERAS CÓSMICAS

Ego remimotáribo nigredus aiñe’éng potár
Ego abá temimbo’é a’é juati’embó-apýnha et
Kurusú id est kurusá-gwasú sive santa joasába
Et opá joawsúba xé py’ápè igitur logos ojepébe
Topárába konipó toparára komonipó topára
Id est kanhembóra ropebypebýka nipó a’é
Opy’á - gwasú:

“Num princípio o verbo se viu no kaos
O grande estouro da galada universal,
Depois os hádrons, leptons ainda depois,
Foi a um segundo, depois três vezes dez na quinta
Veio a radiação e a vida dos mundos
Em desdobramentos muitos e ainda mais
E mais; até o fim desta noite ainda vamos:
A navegar contentes e cruzados no ungido,
Humildes em simplicidade.”


DE SPIRITUS DICIT

I

Ergue-se vozeante o Espírito, em positivo
“- Vê!! Só a luz é eterna e enseminadora,
Neste campo nada é movimento e parte
Sobre tudo isso, o que tudo é, é a mesma luz
E tem-se forma: deiformacionismo!
O ponto cada qual, que humanos são,
Está cada qual extaticizado a cada altura,
Cada átomo do espaço em cada uma direção,
E o sol por sobre todos ocupa sempre
O mesmo ponto inalcançável radioso.
Essa lá lama negra abaixo é sombra,
Como humanas sombras são movíveis,
Aquela, imóvel sempre, implica nada ser,
O sol é o foco e o que se antepara
É o mistério, o corpo circular que
Limita-se a atmosfera lumni-silenciosa.”


DE DE PROFUNDIS SERENATIO

sub rosa emendatio

ODE DE VERÕES

Deita despudorado o verão nos seus dias medianos
Um afago de brasas nos verdejantes cajueiros
Vitimados pelas cinzas e chagas civilizatórias.

Achegam-se bem-te-vis e outros pássaros do trópico
Assobiando prazeirosamente aos nossos ouvidos atentos
E cansados do insólito rumor da vida urbana sem sentidos.

Almoçamos tardiamente jantares, e bebidas tresnoitadas
Pacientam-nos via epifanias e semanas comuns em ócio.

Missas verdes voam em folhas pardo-ressequidas de novo ano,
Cuidadosamente destacadas e vividas por mãos gratas
De suaves seres que nos somos assomados, os três:
Mãe, Filho e Pai a percorrer o impermanente lastro
Na mesma cela libertária da mesma nave dos aflitos.


ODE PARA INVERNOS

E a todos: inverno;
O qualquer nenhum saber;
Até a folha à tarde
Se destaca, não esquecido
Calendário de afãs e esperança;
Já renovados os dias,
Já chuvas de felicidade
E reais cidadanias.
Até mesmo estes versos sutis
E bem mesmo a eufonia
Desta ode indica: inverno;
E um sopro frio corta
A bombordo desta nave,
Sudeste a noroeste,
Umedece vidraças as carroças
Quando canta um galo doido
Desorientado por não ser manhã;
Ou manhas de artifícios:
Guerrilhas de São João
E quadrilhas estilizadas,
E a saudável saudosa brejeirice
Imitada por humanos a beira
De milênio novo, novo
Século, já sopro de outras
Terras... e por todos:
Inverno, eu, banhando-me
Nas insondáveis profundezas
Deste açude divinal
Em que bailam estrelas
E formigam vidas e ilusões.

HAI-KATÚ

da 101 afoito
livrando lama à vereda
um homem ao sol

vento a pentear
o mar do canavial
ressoam meus passos

curvas ladeiras
cercas desbandeiras vivas
cerceando o mar

assovios, silvos, berros
a mata é ilha atlântica
lá abaixo: Katú

não me esperando
a merenda matutina
sabe já que vou

pra casa sem vida
digo eu boas noites-dias
Dona Nô responde

o Katú é assim:
ao centro o rio dá o nome
marginando: o povo

nomes reinventados
como se apelidam lembro
reinventados nomes

a escola escolho
os amigos nomeio tupi
dum lado e doutro

ojepé, mokõi
o professor às contagens
cansado forceja

onze horas suando
d’aula do domingo fim
canavial ou cana

um homem sozinho
no sombrio canavial
sobe e vai ladeira


UNS HAI-PUNX-KAI PLICADOS

PRÓLOGO

aranha no jacko
primeiro pentelho branco
sinais de trânsito

POGO

I
o pogo espoca
a roda gira esmurros
quieto o núcleo

II
moshes capinantes
os punx expelos dardos
brinca molecada

III
a marcha amorna
brasas às águas ardentes
espoca o pogo

SOM

zoombís elétricos
fiações farrapos e Cia.
lixo latadas

o dia todo chuva
o sabão Brilhante babando
moicano morto
(Sopa d'Osso, 1967, Brasil, sopadosso@hotmail.com)

Um comentário:

  1. Grande Sopa,
    Obrando sobre a urbe, urgindo-nos em valiosos poeises...
    Grande abraço,
    Paulo Furquia

    ResponderExcluir