terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Walflan de Queiroz

Retrato de Walflan de Queiroz. Cortesia de João Antônio Bezerra Neto.

Francisco Walflan Furtado de Queiroz (1930-1995) nasceu em São Miguel, no Rio Grande do Norte. Formou-se em Direito no Recife, na década de 50, mas jamais exerceu a profissão, dedicando-se à poesia. Leitor cosmopolita, leu em inglês e francês os inúmeros poetas que permeiam seus textos, ricamente metalinguísticos, bem antes que isto se tornasse recurso comum. Suas principais influências são os românticos e a poesia religiosa, responsáveis pelo caráter místico, amoroso e aventureiro de sua poesia. Desenvolveu, ao longo de sua trajetória, uma obra angustiada, permeada por uma religiosidade sincrética que ocupa totalmente os seus últimos livros. Foi contemporâneo de uma geração notável na literatura produzida no Rio Grande do Norte, da qual surgiram autores como Luís Carlos Guimarães, Zila Mamede e Miguel Cirilo, e para a qual contribuiu de forma decisiva com textos, conferências, livros e traduções. Espírito inquieto e atormentado, foi marinheiro na juventude, indo até as Antilhas e experimentando a vida monástica no sul do país. Seus poemas são vazados, em sua maioria, em versos livres e longos. Sofria de esquizofrenia, doença que acabou por dominá-lo a partir de meados da década de 70, interrompendo sua trajetória poética e humana, e determinando seu internamento e afastamento da poesia durante as últimas décadas de sua vida. Apaixonado por Rimbaud, reza sua legenda que foi enterrado com seu exemplar das obras completas do poeta francês, seu livro de cabeceira até o último instante. [Márcio Simões]

De O Tempo da Solidão, 1960:

POEMA

Um navio inútil, vem da minha infância e me chama para uma viagem cujo rumo ignoro.
Uma árvore estéril me oferece os seus ramos para neles eu repousar da minha solidão.
Seios misteriosos convidam-me para um acalanto que não aceito porque talvez os profanasse.
Mãos cruéis procuram as minhas já esmagadas e destituídas de qualquer cólera contra os meus irmãos.

Fujo a todos os convites.

Ficarei apenas me alimentando da imensa tristeza do mundo.
Ficarei apenas me nutrindo das pedras dos caminhos, dos risos dos palhaços e das canções dos marinheiros.

NO NAME

Ah! Minha alma triste te implora perdão.
Nunca desejei de ti senão preces, ternura.
Teus olhos que se encontravam com os meus,
Eram como um farol me guiando no mar cheio de tormentas de minha vida.

E como duas almas irmã, seguimos pelo mesmo caminho.
Não juntos, e sim apartados pelo destino.
Entretanto, sei que há um lugar para os que sofrem.
Um porto magnífico de velas brancas e tardes azuis.

BATEAU IVRE
para Dorian Gray

Tenho que ancorar numa ilha do arquipélago das Marquesas.
Pode ser Typee ou outra ilha qualquer, não me interessa.
Estou cansado de istmos e golfos amargos.
Em Typee terei tempo e oportunidade de esconder
As pérolas negras que trafiquei no ponto de Timbuktu.
Talvez faça um poema para a filha do cacique
E durma com ela ao som dos riachos e das fontes.
Passarei uns quatro meses distante do mundo selvagem
E me distrairei com as danças e rituais mágicos dos nativos.
Ela será para mim, como a Tehura de Paul Gaughin.

AUTOBIOGRAFIA
 
Nasci sob o signo de São Bento José Labre.
Pedi esmola na porta de Notre Dame,
E fui encontrado morto numa rua de Madrid.
O primeiro hino foi meu, o primeiro canto,
Que comoveu a alma de Francesca de Rímini.
Fui monge, amei a virgem.
Fui marinheiro, estive no oriente.
Mais tarde, pertenci ao grupo dos poetas malditos,
E escrevi o meu último poema para uma menina espanhola.

POEMA

Viannay, Mazeran, Bardey & Cia
Meu poema não será casto nem solene
Mas falará da infinita beleza da Virgem Maria.
Night and day girls all prices
No porto iluminado uivam os lobos do mar
Pequod
Quero que o meu escarro seja brilhante
E não me digam que as ervas noturnas
Não crescem em meu jardim.
Irene, Tereza, nomes que definem
Minha inocência perdida.

AUTORETRATO
a Luís Carlos Guimarães

Não tenho a beleza de Rimbaud, nem o rosto torturado de Baudelaire.
Tenho sim, olhos negros, negros como os de Poe.
Meus cabelos são soltos, em desalinho
Como os de algum anjo ou demônio.
Minha pele, queimada eternamente pelo sol, tem o sal do mar
E a cor morena dos que são náufragos.
Minhas mãos são pequenas, tristes embora,
Como as mãos de alguém que só as estendeu para o adeus.  

ANGÚSTIA
a Berilo

O que é romântico não pode desaparecer da vida nem da morte.
Infelizmente da minha janela, não vejo senão um céu opaco e indiferente.

Não adianta desejar.

Violetas não resolvem meu problema.
Tudo passa e o vento de Abril leva meus melhores pensamentos.
Que náusea a vida!

Fico desgraçadamente só.
Nenhuma solução me leva ao tempo de menino.

A QUE SE DESILUDIU DE TUDO

És a que procuro, tu, a que se desiludiu de tudo e se evadiu do mundo.
A que esteve em Bornéu, Timbuktu e Sumatra.
A que alugou seu corpo em todas as ilhas e amou nos deltas de todos os rios.
A que dormiu com marinheiros, escroques, aventureiros e contrabandistas.
Ante teu corpo nu e primitivo, fiquei paralisado e imóvel.
És a que procuro, tu, para quem acumulei o perdão, o sofrimento e a angústia.
Para que visses em mim, toda a beleza que há esparsa em ti.
Para ti, eu comprei a libertação e o amor.

POEMA DO MUTILADO

Não me amem. Mutilaram-me quando vim ao mundo.
Não me olhem. Minhas mãos sangram ainda.
Não tenho presente nem passado, não pertenço a nenhum grupo, partido, seita, ou religião.
Amigos me faltam sempre, nunca inimigos.
As mulheres com as quais eu dormi, assassinaram-me.
Tenho estreita afinidade com os bandidos, os contrabandistas e os gângsteres.
Tenho vivido já em várias épocas, não fui aceito por nenhuma.
Meu povo é o de Hamlet, o de MacBeth, e o de Ricardo III.
Amo somente a noite.
Amo somente minha solidão.
Não me amem. Sou um homem mutilado pelo sofrimento.
Não me olhem. Tenho no rosto os estigmas da crueldade.
Não tenho presente nem passado, não pertenço a nenhuma vida e nem a nenhum coração.
Faço poemas apenas porque sou um homem mutilado.

RIMBAUD

Não desci dos teus rios impassíveis,
Mas vi os teus peixes de ouro, cantadores.
Não teci imensidades azuis,
Mas não gosto dos Menelicks.
Permiti-me chorar sobre o teu túmulo, Rimbaud. 

MAPA
a Newton

Ao norte: O vento noturno, o país dos gnomos, Poe atormentando meu sono
E o condado de amor de Annabel Lee.
E mais ainda este furacão, esta ponte, esta ilha do mar das Caraíbas e o suicídio de Hart Crane.
Ao sul: A estrela candente, a rua onde moravas, Keats perdurando em nossos pensamentos, tuas mãos afagando as minhas.
A leste: O anjo do apocalipse com as chaves dos poços do abismo, o deserto amargo, uma solidão 
                                                                                                                                    [marítima.
A oeste: Um poeta cartuxo pedindo esmola e morrendo penitente em Roma, São Bento José Labre.

  
De O Livro de Tânia, 1963:

ANJO, NÃO ME DEIXES TÃO SÓ

Somente tenho olhos para ti
E com eles construo um mundo refletindo a tua Beleza
De uma estrela fixa.
Não quebrarei o silêncio das idades, nem verei a lua
Enraivecida dizer numa canção que não mais te amo.
Embora o mar não corra pela praia
E o sol não se misture com o oceano
Te amarei e te louvarei sempre.
Annabel Lee dos meus sonhos, lírio de minha solidão,
Dá-me o alento para os meus dias, bálsamos para o meu
Sofrimento.
Sou como a noite, não sei onde moro.
Vem para mim como esquecimento sobre o meu corpo.
Fonte do meu silêncio e ternura de minha morte.

TU, QUE PERMANECES

Vivo, num silêncio pleno de estrelas a espargir,
Em poemas doloridos, a minha angústia e o meu destino,
Pela distância que acompanha meus passos nos caminhos
Do mar onde te encontro perto deste negro cais de ausência
A prender-me tal um bloco de mármore e a impedir-me
De te ver como uma cinzenta nuvem por sobre minhas pálpebras.
Sei que numa outra Morte ou numa Vida terei um outro Mar
Para te oferecer e que nele verei um novo Horizonte
Onde debruçarei a minha antiga solidão e do qual ouvirei
A afirmação de que terei uma quieta onda em teus braços,
Quando tudo se fizer tranquilo na hora doce do crepúsculo
E na paz das águas em sofrimento.

PEDIDO
à Leda, a divina

Senhor, Deus, quero como recompensa, apenas isto:
O mar do poeta Hart Crane,
A ternura da chuva numa noite de solidão,
E o sorriso daquela pobre criança.
Senhor, quero também, se tanto merecer de Vós,
A beleza daqueles barcos, que, brancos como os cisnes de Rilke,
Não sei de onde vêm e nem para onde vão.

AO FILHO DO HOMEM

Como invocá-lo agora que o encontrei e me sinto
Triste ao meio da solidão das grandes avenidas?
Pudesse eu pelo caminho, vê-lo como a um anjo,
Neste silêncio onde nenhuma estrela ou lanterna,
Jamais clareou a sua sagrada face como a um sol.
Tivesse eu, olhos violeta, o contemplaria sereno
Como um anjo de cabelos rebeldes, prenúncio
De Vida, Morte, Ressurreição. 

TÂNIA

Embora o mar derrame as águas do seu pranto por sobre os nossos corações,
E o tédio de suas ondas faça saltar as pedras contra a aurora,
Que, irrompendo como um leão dentre as colinas distantes
Onde óleo, sal, e espuma,
Entregam a Deus, o alento de nossas preces,
Não partirei, minha doce amiga, não partirei,
Para nenhuma terra desconhecida.
Deixemos que as estrelas, com suas vestes tão amigas,
Nos digam o que a enfurecida lua, não pôde dizer em sua frieza. 

DESEJO

Uma pequena tumba, com um nome numa pedra.
Algumas rosas, um olhar.
Eis o que quero.
Um abrigo, por fim alcançado,
Perto do simples rio, de um salgueiro.

POEMA EM OUTUBRO
à Deusa da Poesia
Um distante silêncio, vindo das devastadas mansões do tempo,
Vem ao meu encontro, e, como suave neve, como delicada chuva em Outubro
Molha a solidão de minha noite fria.
Graças a ele, penso tristemente nos mortos e amantes que se foram
Como irradiante réstia de sol, como água que corre dos rios
E me traz o aroma das margaridas adolescentes, o brilho de peixes de cristal.
Estes mortos nos quais eu penso, andaram por ilhas, conheceram baías verdes,
E como vulcões, ergueram suas chamas ardentes contra o céu.
Um distante silêncio desce das devastadas mansões do tempo, molhando minha solidão.

POEMA

Não me tirem o que me resta, um mar e um horizonte,
Me dado por Deus para a minha contemplação.
Não me tirem este mar, pois nele parto todas as manhãs,
Para viagens eternas e em que sinto as estrelas me guiarem
Pela Noite em direção aos espaços desconhecidos onde moram
As lembranças daqueles que morreram em abismo de nuvens e de ocasos.
Tendo este mar, tendo este horizonte, posso olhar qualquer paisagem,
Posso pensar em ti, a que foi para mim como um simples e terno
Silêncio, como um som, um gemido por entre as vagas inquietas do meu desespero.

A SOLIDÃO DO ANJO

Meus olhos, minhas mãos estão esmagadas.
Não quero ver mais o anjo em solidão.
Ei-lo sempre distante, mas sorrindo,
Num gesto de quem perdoa e esquece.
Sofrendo como eu, o incrível tormento
E velando com a sua sombra
O meu sono.
Busco, pela planície, ao meio-dia,
Ou no deserto sem estrelas, aquela
Fonte, de águas adormecidas, tal como eu. 


de O Testamento de Jó, 1965:

SOLIDÃO DE JÓ

Me insultem, mas não me tirem este rio.
Me escarneçam, mas não me joguem pedras como a Cristo.
Me censurem, mas não me arrebatem este puríssimo céu de abril,
Cheio de estrelas, de nebulosas e de astros errantes de Deus.
Fui criado como Jó, antiquíssimo antepassado bíblico,
E vivo entre a minha solidão e a sabedoria de Deus.

POEMA

Eu te falarei da noite misteriosa e doce
E das mil angústias que afligem minha alma.
Na tua procura pelos mundos desolados,
Encontrei somente a dor habitando minha solidão.
Eu te falarei do mar ausente, e da nuvem
De mármore que se quebrou de encontro ao ocaso.
Não te falarei das colinas de Deus, dos penhascos
Distantes decorados por horizontes de ouro.
Te falarei, entretanto, da minha solidão
Caminhando pelas florestas insones do pranto
E te recordando em cada flor, em cada pássaro
Voando em direção à aurora em busca da morte.
Te direi apenas da minha pobreza, da minha dor
Quando desfeitas e caídas com pétalas nas mãos de Deus.

POEMA DA DESCONSOLAÇÃO

Serás como uma sombra,
De uma terra distante.
Nem o Tempo,
Nem a Eternidade,
Virão ao teu encontro.

Os túmulos,
Estarão abertos,
E os espectros trarão,
Pirilampos,
Em suas cabeças.

Serás como uma sombra,
De um bosque perdido.
Nem o mar,
Nem o vento,
Se quebrarão,
Contra a praia.

Mas a dor e o desalento,
Anunciarão tua partida,
Com dobres de tristeza,
Porque vieste,
Das ruínas de um Templo,
E de uma cidade desaparecida.

Mas em teus olhos violetas,
Estarão paisagens,
Para sempre silenciosas,
Que descerão,
Sobre minhas noites,
Desconsoladas e tristes.

PARA H.

Tu nunca entenderás o mistério do pássaro.
Porque o pássaro é sol, nostalgia de infinito
E a sua voz, não é mais do que a nossa voz,
Quando morre em nós, a angústia do azul.
Do seu voo, apenas entrevemos os ocasos.
E do seu canto, a irredutível tristeza.
Distantes são as fontes, proibidas as colinas,
Quando abafamos em nós, a espera da aurora.
Porque o pássaro, não vive sem outro pássaro,
Enquanto a dor o tortura entre trêmulos arbustos.
Que temos em nós, quando os crepúsculos
Nos inspiram o canto e a morte?

TRANSFIGURAÇÃO

Transfigurei-me
E me tornei
Como o mar.
Tenho sal
E trago musgos
Em mim.

Não sou mais
Como a noite,
Não sou mais
Como o vento.

Transfigurei-me
E me tornei
Como um rio,
Em cujas águas azuladas,
Contemplo o teu rosto.

Transfigurei-me
E me tornei
Como o mar.
Me tornei como um pássaro.
Que te procura,
Todo momento,
Na tempestade.
 
ESTA NOITE, EM TEUS OLHOS

Procurar-te na noite,
E te encontrar junto ao mar.
Te olhar assim em sombras,
E não te esquecer jamais,
Pois guardas em teus olhos,
A brancura dos barcos e dos cisnes.
Sofrer, por saber que, sob pálpebras
Tão serenas, dormem crepúsculos massacrados.
Não, esta noite, em teus olhos,
Vejo reduzidos lagos,
Enquanto ao longe, sinto o mar tecer uma lenda,
Sobre o nosso misterioso silêncio.
  
ORFEU

Enquanto choro o crepúsculo,
Ouço a voz do Templo coberto de sol,
E caminho pelos vales da Trácia,
Atendendo ao meu próprio apelo.

Enquanto choro a noite de estrelas,
Sinto que as árvores rastejam,
Que as pedras saltam e os ventos
Do mar, gemem quando falo.

Ai de vós, tristes bacantes,
Pois Zeus, me devolve sempre,
Aquela que se espalha no meu canto.
 
  
de A Colina de Deus, 1967:

ISRAFEL

Três amores
E uma solidão.
Irene, Tânia
E Herna
Vi Abraão
No Monte Moriá.

Três amores
E uma solidão.
Irene azul.
Tânia amarga
E Herna triste.

SALMO

Senhor, a Noite
Não se abalou
Em seus fundamentos
Nem muito menos
A Luz se distendeu
Em suas origens.

Enquanto a solidão
Existia e olhavas
Do Alto, o Anjo
Que se apegava
Ao Arco do Infinito.

INDECISÃO NA NOITE

Hei de buscar o apoio e o conforto serenos,
Das imagens perdidas e dos corpos esguios.
Hei de narrar sem dor e sem tristeza,
Meus últimos instantes sem aventuras e sem sono.
Direi do mistério, falarei das sombras
Que envolviam teus olhos em meu sonho.
Hei de encontrar talvez lares e abrigos desertos
No meu caminho repleto de cruzes e de lamentos.
Serei pela noite, sempre um homem indeciso
E sem saber por que, venho trôpego de um país de sombras.

CANÇÃO DE MADRID
a Irene

Iremos juntos
Contestes e livres
À Espanha
Levando sonhos e desejos.

Faremos poemas
À Liberdade
Tendo Madrid
Conosco.

Plantaremos
Ciprestes e salgueiros
Esguios e tristes
No túmulo de Lorca.

Recitaremos estrofes
De Bandeira e Neruda
Em Barcelona.

Marcharemos cantando
Lutaremos alegres
Venceremos
Tendo Madrid
Conosco.

Iremos juntos
Contentes e livres
À Espanha
Levando sonhos
E desejos
De Liberdade.


De Nas Fontes da Salvação, 1970:


Sábio, ante Deus,
É quem sabe,
Que é pó,
Nada mais.

HERNA

Verde
Como uma onda,
Sobre meus braços.

Esguia
Como uma rosa,
Do Sinai.

Pura
Como uma palavra,
Saída da boca de Jeová.

  
De Aos Teus Pés, Senhor, 1972:

O POETA

Por caminhos órficos eu andei, por terras
Estranhas, por templos de sol e de neve.

Antigas formas eu contemplei, colunas gregas
Erguidas ao culto do Deus Sublime.

Por desertos imensos eu andei, por sonhos
Azuis que guiavam meus passos de solidão.

Tive sede e não bebi água. Tive fome
E não comi pão.

Mas o Senhor me ensinou bem, a canção
Que desperta as manhãs e os lagos.

Hoje, como chamar-Te? Que nome Te darei?
Creio que És a Musa e o Mestre.

PARA SHAKESPEARE

Se um dia eu rasgar os poemas que fiz,
Ou que minhas mãos não se ergam para Ti,
E meus lábios pronuciem imprecações,
Ou esqueça a Musa, não será por Ti.

Se um dia eu viajar por terras estranhas,
Ou veja espectros e bruxas ao meu lado,
E veja toda a opinião pública contra mim,
Ou a morte me consuma, não será por Ti.

Por Ti será apenas meu último gesto,
Minha última palavra, meu último amor.
Pois tu, Will, vives em mim e eu em Ti.

Passe o mundo vão, a glória transitória,
Morra a carne e o pecado, a canção triste,
Só Tu me consumes, como o Senhor ao escravo.

MENSAGEM

Dos rios que escutei,
Trouxe o marulho das ondas,
Para te acalentar
Em tardes de solidão.

Dos desertos que andei,
Trouxe o rumor dos ventos,
Para te acariciar
Nos momentos de ternura.

Das cidades em que estive,
Trouxe a tristeza das ruas,
Para te amar
Junto aos seus regaços.

Allah não esquece o seu servo,
Quando envia sua mensagem.

POEMA DEDICADO AO POETA HART CRANE

Hart, Hart, escreve-me do Rio, das Antilhas e do México.
Manda-me Tua mensagem dos portos, das ilhas e dos continentes insubmissos.
Escreve Tua ponte de novo para mim, inconclusa, heroica e humilde, para que eu me comunique Contigo

E caminhe pelas florestas de Bryant e de Whitier.
Hart lírico, Hart apolíneo,
Que comeste o pão dos anjos.
Hart meigo, Hart puro,
Que tinhas em Ti o Fogo do Altíssimo.

Hart, Hart, Tua Musa em conheço, era uma abelha do Paraíso.
Hart, Hart, não Te esqueci, poeta irmão, quando foste devorado pelos tubarões

E Maria docemente contemplava os Teus olhos.
Hart, Hart, perdemos as imagens, mas Tu as recriaste.
Morrem os corações, mas Tu nos ofereceste o Teu.

PARA O MEU ÚNICO AMOR

Tu só vives em mim, Rosa das Antilhas,
Único amor reencontrado entre as ilhas
De coral e de basalto.

Auroras não vi. Ritmos não ouvi
Senão o da Tua Voz.
Alegria dos anjos.

Nenhuma noite. Ao longe o aceno das ilhas
E dentro de mim a maravilha da Tua graça
Transformada em música.

NOTURNO PARA HERNA

Gemidos vãos de crianças,
Ao relento.
Gritos trágicos,
Sobre a enseada do céu.
Solidão. Tua presença,
Quando caminho sobre os estilhaços,
Do Tempo.

Nem madressilvas nem gerânios,
Para a minha sepultura.
Solidão. Esta saudade de ti,
Que me faz retornar inquieto,
Ao seio da Noite.

ELEGIA

Verlaine. Tristeza.
Manhã clara.
Pássaros azuis voando
Sobre a minha alma.

Tu, distante,
Mas presente ao meu coração.
E a voz de Deus a chamar-me
Ao apelo definitivo.

OM

Om. Monges budistas
De mãos cruzadas,
Pronunciam vosso nome.

Eremitas cantam
Sobre o Ganges,
A vossa Humildade.

Fontes sagradas
Guardam a Flor de Lótus.
Brahman transfigura-se em mil seres,
E revela sua forma a Krishna.

As rosas fecundantes. As rosas fecundantes.

INOCÊNCIA
a Krishna

Morrei fariseus,
Morrei bacantes,
Morrei lunares,
Para que Brahman viva.

Inocente como a pomba,
O Filho de Marahdeva,
Redimiu os árias redivivos.

Para que viva o Filho do Sol.
Porque os maus devem morrer.

Vivei Cristo,
Vivei Orfeu,
Vivei Krishna.
Para que morra o Filho da Lua.

Inocente como as Inspiração de Marahdeva,
O Verbo Krishna encarnou-se,
Para a glorificação de Brahman.

PRECE

Senhor, fazei com que os lírios voltem para os campos,
E que a noite serena volte à minha alma.
Senhor, fazei que viva em mim, o Espírito do Evangelho,
E que as tempestades se acalmem para sempre.
Senhor, fazei-me atingir a paz dos contemplativos,
E tende piedade de vossos filhos, dos que não negaram,
Nem o Pai, nem o Filho, nem o Espírito Santo.
Senhor, fazei que vossos filhos vençam o mundo,
Olhando para Vós, em silêncio, rumo ao Infinito.

JAVÉ

Senhor, o orvalho umedece o gerânio,
No mistério inefável entre a lenda e a rosa.
O anjo olha Deus, e torna-se humilde
Ao contemplar o Mestre.
Seu olhar transmuta-se, enquanto seu corpo
De cordeiro e de pássaro,
Ressuscita entre as planícies pisadas outrora,
Pelo olhar do Filho de Deus.
Senhor, Teu encanto mágico e noturno,
Transmutou também os edifícios brancos,
Da cidade longínqua e solene.
As fontes não estão esgotadas, enquanto olhas,
Para as pontes da Eternidade.


de A Fonte de Zeus, 1974:

OS ANJOS

A quem amam os anjos? Ao Pai.
Eles comunicam-se com a Imortal Beleza
Que no principio criou as estrelas.
A quem louvam os anjos? Ao Pai.

Eles caminham pelos Jardins de Jeohvah
Quando suas asas se abrem ao vento.

ELOHIM

Forças envoltas no espaço sideral,
Milhões de astros girando no Infinito,
Gênio Sublime do qual emana a Natureza.
Nem um átomo existe sem teu Conhecimento,
Nem um grão de areia sem a tua Vontade.
Embora pereça todo o dualismo Universal,
Embora morram todas as Formas e Seres,
Elohim existe por toda a Eternidade.
A Natureza revolve-se e prenuncia
A Existência do mais Sublime dos Gênios.
Deus Onipotente, pronuncia do alto do Trono,
A Palavra que me redime.

O RAMO DOURADO

Após o sacrifício na Acrópole,
Dirijo-me ao lugar da fonte sagrada,
Para entregar o meu ramo a Zeus.

O ramo que me foi dado por Melpomene,
Eu devolvo-o ao Pai Universal.

Como a fonte é sagrada, e de Zeus,
O ramo pertencia às Graças.

Agradeço a Zeus, o sacrifício,
De Ateneia Diipólia,

Assim como as minhas oferendas.

TZAMARA

Iahvé. Os deuses o conhecem.

Ele pronuncia Tzamara e meu coração
Reflete rico de dor.

Tazamara. A Única palavra mágica
Que ouvi em toda a minha vida.

Iahvé. Deixai-me pensar que vivo,
E que não morrerei sem Vós.
  
A NOITE DE ALLAH

Não tinha ainda visto a luz do sol, nem meus olhos tinham contemplado
Os regatos que corriam pelos vales.
Não entendia mesmo ainda a música do vento, nem tinha visto as colinas
De Deus no horizonte da Abadia.

Quando vi Tua Noite, Senhor!
Maravilhosa Noite de milhões de astros e sóis adjacentes.
Arrebataste-me como uma estrela, Senhor! E os deuses fugiram ante
O Teu Amor!

A cidade maldita, inclinou-se para o Oriente, enquanto como um leão
Me devoravas!

Não tinha ainda conhecido as manhãs, nem minhas mãos tinham sido encantadas para Ti, Senhor!

Meu coração ainda não palpitava ao toque da graça, nem minha alma
Sabia o que fosse a Fonte da Beleza.

Quando vi Tua Noite, Senhor! Noite de Luz como num nicho.
Allah somente sabe o que as estrelas não podem dizer.


 De A Noite de Allah, 1977:

ALADIM

Ao Gênio da Lâmpada Maravilhosa,
Faço dois pedidos.
Mas a Allah, faço apenas um.

Do Gênio, quero um palácio azul
E Irene.

De Allah, quero somente não perder
Nunca a Lâmpada Maravilhosa.


POESIA E TENTATIVA

            Muita gente ignora que a poesia seja uma arte temporal. E que, como a música e o canto popular, tem raízes na imaginação, nas festas do povo, nas baladas e no ditirambo grego.
            O primeiro poeta foi Homero. O primeiro sacerdote, Orfeu. Descendemos de Homero, como descendemos de Orfeu. O objeto da poesia, nem sempre é o mesmo, mas a pureza da intenção, o prazer superior do espírito, permanece.
Se considero Shakespeare o mais completo poeta que existiu, foi porque ele traçou com Hamlet, o retrato do artista. Hamlet foi e será sempre um limite entre o conhecido e o desconhecido, entre a luz e as trevas. Quem não entender o tipo Hamlet, nada percebe, nada intui do belo e do trágico que mora no homem.
E Hamlet não gostava de Polonius. Amava apenas uma mulher de olhos doces e meigos.
Foi com Poe que aprendi uma definição de poesia. “Criação rítmica da beleza”, assim fala o poeta que conheceu do anjo e do demônio. E que, por fim, venceu o demônio.
Confesso que reconheço a modificação que vem passando a poesia ultimamente. A linguagem tornou-se mais precisa, a escolha da palavra mais cuidadosamente feita pelo poeta, o ritmo e o sentido imprimiram significação moderna ao símbolo, ao senso da metáfora. Quero dizer, a poesia passa a ter um sentido mais universal, valorizando a tradição, porém não esquecendo a experiência do momento, a emoção que vem do contato permanente e constante com a vida.
Sendo assim, não somos românticos nem simbolistas. Somos os que procuram a autoexpressão para dar significação à personalidade mergulhada muitas vezes na prisão do espírito, ressentindo todas as influências que decorrem do ambiente e da sociedade. O poeta nem sempre aceita o mundo circundante. Tem revolta. E sua revolta não se dirige contra o destino, como Sófocles. Sua revolta se dirige contra convenções, normas ultrapassadas, preconceitos apodrecidos de uma sociedade que não preenche mais as necessidades de apoio moral e intelectual de que precisa o homem.
Uso na minha poesia uma técnica puramente verbal de dar sentido à emoção. Expressão culta, não oral, mas escrita, de transmissão de impressões e de procura de uma possibilidade. O conhecimento científico difere do conhecimento poético. Na ciência buscamos a certeza. A psicologia, a sociologia, a antropologia, são ciências que também se contemporanizam, quebrando antigos tabus sobre o universo.
O poeta moderno exprime mais livremente a sua mensagem. No entanto a sua responsabilidade é maior. Um Robert Frost, cujo compromisso com a beleza e a harmonia, é altamente grande, não deixou de ser o melhor poeta americano contemporâneo.
Sua aceitação da noite, sua participação com a natureza, tornaram-no o mais autêntico, porque o mais ligado àquelas fontes espontâneas que fazem do poeta o bardo, o vidente.
Minha intenção neste livro de poemas, foi única e exclusivamente poética. Qualquer outra interpretação, trai a malícia de quem a imaginou. Uma mulher pode ser um abismo, como também uma flor da montanha. No meu caso, encontrei um abismo. Mas, somente no abismo encontra-se a verdade. Os deuses amam a profundidade, não o tumulto, dentro da gente.
Tirei deste abismo, rosas azuis. Com elas, faço um ramo dourado e o deponho perto de minha janela. Pássaros vindos, não sei de que nascentes ou de que montanhas, cantam novas canções para mim.
Mas, fiquemos com a opinião crítica de Eliot. Não sejamos mais românticos. Aceitemos antes, a mensagem de Donne e de Vaugham, mais do que a de Wordsworth ou de Shelley.
Estejamos com a doçura de Emily Dickinson, contra a brutalidade de Aquiles ou de Agamenon.
Prefiramos Baudelaire. E nem desprezemos Musset. Visitemos o cemitério marinho de Valéry, e sejamos como ele, universais. Tão universais quanto Da Vinci ou Goethe.
            E não desprezemos a nuvem branca que borda o firmamento com faíscas de ouro e de basalto.
            E então, recordemos Hart Crane. Tenhamos a humildade de um cisne. E a tranquilidade de um vaso chinês. Saberemos agora porque o silêncio não se transmite por herança. E que muitas vezes somos importunos por necessidade, insistentes por desconfiança.
            Sou como Heráclito. Todo fim representa um princípio. Tudo flui num ritmo eterno.
            Milton foi adversário do mal. Miguel e Satã. Tristão e Isolda. 

[de: O Livro de Tânia]

Nenhum comentário:

Postar um comentário