terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Rodrigo Barbosa da Silva - Poemas da Antologia Sol Negro

Ilustração de Binho Duarte

DE POEMAS

I
 
atravessei o núcleo numa carreira e nasci
dançando
             repuxava os bicos                 seios de minha mãe
atravesso as trevas
   escapo longe
o sol doura o corpo quente      meu primeiro dia
barrento coração rebenta          violentado em luz


II
 
POEMA DE UMA TARDE PRIMAVERIL


calor da tarde e voz de Nico
suave como o suor da primavera
tenra deleita também na mente
o bom do fumo de todo dia fumado

o que há pra fazer há pra desfazer
nesta tarde quieta nada tarda
nem o lírio no jarro ao lado
nem o cacto que nasce no peito


III

à noite a dama doce amada suada dorme
ao fogo seus cabelos consolam seus olhos
nublados abrandam meu olhar.

à noite as coisas tiveram num falo de sorte
o entrelaçamento das volúpias
e a pulsação única do mundo.

o talo verde namora o aroma da rosa
essa doce menina de corpo infinito.


IV
  
GIRA DEUS
 
Gira deus no dormitório dos monges
   no toalete das freiras
   nas esquinas dos bêbados
   nas tocas dos maconheiros
   gira deus nas faces insones
gira deus nas orações da noite toda
   nas bundas das desinibidas irmãs

gira no girassol
gira sol e girassol é meu deus
e girassol é meu olho inclinado ao acaso
ao descaso da vigília
gira deus
e me encontra nessa desordem de coisas
   onde tudo pira
   onde tudo gira
ave maria gira e traz meu espírito de volta
   deve tá na china
ou ainda pior deve tá na oficina de deus
   concertando o volante
   zerando o cronômetro e o velocímetro
   ou aporrinhando os santos
gira deus na chuva debaixo da luz amarela
por cima da chuva por cima de mim e em mim
gira deus em tudo.


DE O JARDIM DE SOLOMON
  
V
 
  sou adepto incondicional
da reeducação através da intuição espiritual

creio em religião não em dogmas

às vezes sou como um intranquilo demônio
mas
  sempre
apaixonado pelo frenético pensamento-amor por todas as coisas

sei que coisas diversas somos
  coisas órficas,
               coisas mergulhadamente caídas
coisas relativamente absolutas,              unicamente indefinidas
   inconfundivelmente       em giro eterno
               coisas  épicas e de absurdas aventuras
adventos do rio de sangue, adeptos do eterno amor
do agora e sempre no vácuo
          da expedição
cegos centauros do grão da palavra
que brota como humano-dragão-besouro-de-deus,
      como sol tangendo instrumentos mântricos
         em lâminas e flâmulas de alegrias
      imitando nuvens,
                                                  como pássaros em voo pleno
   vagando em brisa & o assovio do vento
   & o trovão da bênção

 
VI
  
equinócio
no jardim, flor
de quenopódio
te ofereço a ti
virgem maria
incensando canabis, 
heras terrestres,
mãe protetora
com suas orquídeas e alquimilas

rosa, romã,
mãe preta
branca flor
de lírio
mãe maria minha

flor dos céus
flor das águas, flor das terras
das serras e serrados
flor do deserto, do pico da montanha
e flor até do meio do asfalto

com tua graça o sol derrama
em nossa cabeça sua barba
e nosso horto floresce
e a palavra da morada
deságua de tuas fontes

somos as árvores de tua bênção

ó virgem trepadeira
que sublime sobes pelos galhos
dos nossos membros até os frutos
bagas dos olhos corações alma


VII
  
há n’alma do cosmo um rio

em vidas muitas, que de vez

em quando, noite ou dia, insiste:


conduz como comboio de navio

em número de mil vezes mil e dez

as estrelas que viste


o abismo entre teus ombros foi

que caminhou teu coração e fez

verter em vinha o triste


DE FLÂMULAS, HIDRAS & COQUETÉIS

VIII

ÓRFICO DE UM JARDIM

encontrei Rosa
entre vetustos sonhos
vestida e despida
pelas estradas errantes
transpirando como timbre noturno
atraindo meu olhar para as vielas
labirínticas e sincrônicas
dos mais lúcidos vestígios do salto
na sombra do jardim onde carvalhos
nos campos estelares por onde passamos
louco cálice transfigurando
como numa revoada
rajada de chamas                    pelos cantos tântricos
e o trago lá                  onde se deixa brilhar quanto quiser
e a língua         não prende mais o transformar
nem     as asas do gavião da mente
nem o olhar atraído pelo ímã
e pela guelra da poesia contínua
ecoando feito aquele sujeito
que disse que não existia
e mesmo assim
foi dormir depois de beber
uns bons tantos tragos de cana
e amar loucamente como selvagem
na mágica noite toda escura

uma voz doce             havia anunciado
e ela veio caminhando            do sertão
marcando o chão com sua sapatilha
de mira-celi ascendente
por ser aquela que me dá
e ressoa os cantos e os gritos de todos
de séculos sem fins
de pálpebras e pensamentos
expulsando os troncos brabos
que eclipsam nosso olhar

e assim com as sombras
de algumas filosofias
os lívidos lábios da amante
me plantam e me lançam
pelos lençóis misteriosos
da vibração e galopes da
 existência
IX
 
Eu me envolvo no fértil acalanto desse povoado jardim
Disperso e ansioso pelo caminho de copas e sementes

O vermelho talha tua boca para lançar-se em palavra-sendo
Alimento da criança órfã e poetas e estrelas comunicantes

Labirintos trilhados pela formiga e o fio de seda de Salomão
Explosões em visões alçadas e lançadas por trevas e clarões

Estrela negra e o surdo murmúrio do rio em curso
Galos oboés e entalhos prefaciando o livromúsica

Saltos soltos despojos arrancados pela Rosa mutação
Ciclones em cinturão e batuques em Batá na Pedra de Raio


X
 
TRANSMUTAÇÃO DA PRECE
                                  
cachoeiras de cabelos línguas lâminas
para ter o feixe faísca da poesia peixe
para ver o raio gentil caveira em ouro
olho profundo borbulho de sol estômago
palavras relâmpagos pureza inatingível
lâmpada flâmula roubo da morte
cravo em chama leva e levanta luzes
musa mundo amor abismo rodopio
viola rebentada em corais e cores eternas

o fantasma escova os dentes do violino
no clavicórdio espólio dos gritos santos
tristes motéis de anjos com asas de fogo
música muda musa lúdica musica via luta
semeia sonhos em sexos e favas vendavais
pentelho coletivo coração de girassol e tesoura
bicicleta flutua lulas estrelas subindo árvores
espírito da mosca masca céu em dinamites
pernas soltas atravessadas pelos olhos de deus



  XI

 O MENINO E O PAI
 
O menino viu o Tathagata no mato
o pai desmentiu
disse que era bicho
disse que isso não existe
“Deus é Deus e tá lá no céu...”
O menino silencioso riu
Estava vendo o Tathagata
Onde quer que olhasse
Estava vendo o Tathagata


 XII
 
PIPOCA COM MOLOTOV – PARA SER RECITADO ACOMPANHADO POR UMA
GUITARRA ELÉTRICA E UMA FLAUTA FRENÉTICA


aos saltos altos
desses pipocos ditos
aos claros brados
aos limes vermes
palavras achadas à lança
                                               alvasa ovosso
estourestrondo explode
esforço espaço espesso 
           
nada dessa arca ressaca
arcabouço
                                               burocratas
                                               saladas de gravatas&granadas

nos baste o estilete do pixote
e os archotes e arrebites da palavra
                                                            
e as bestas e os anjos
com os rubros cintilantes ópticos
mantenham os pentelhos arrepiados
e os arredios esparsos da força
                                               da pata do cavalo
                                               na imaginação pisoteando
                                               os miolos deveras
                                                           maus&politizatados


 
XIII
 
MIRA-CELI ROSA ME EXPULSA DO COTIDIANO
 
se tuas tranças efêmeras transformam minha palavra
se a ti devoto relvoso segredo galáxias e vorazes vertigens
se a flauta sopra tuas sobrancelhas curvas do mistério
se em vez de violinos teus lábios e olhos umbigo girassol
se nuvens dançam grávidas o leite plasmático de lúcifer
se o esquecimento aquece tua flor em tantra e sangue
se o osso da luz é cúmplice da vela e da treva perene

as palavras abandonadas roem tormentas na rede suja
pássaros tráfegos de estrelas borbulhantes de fogo

se teu absurdo reinventa a luta e escolhe o jardim
se tua boca cálice de tantas vozes serve a noite em taça
se é melhor suportar o peso das estrelas do que da cruz

o lençol do piano lança luzes espermáticas no espaço
o silêncio dança indecifrável chuva gozo luz de lamparina

as luas estão cheias de rastros mágicos e no ar partituras
música ruptura de sapatos gravatas casa e supermercados


XIV

 JUVENILIS E TERRORISMO POÉTICO

flâmulas & hidras
& coquetéis molotov
tarântulas & mirras
& bordéis com orloff
tâmaras & águas
& poesias sem páginas
trapos & risos
& viagens a pé
cãnhamo & rouxinóis
& saravá axé


XV

 TIRINETE PARA PERCUSSÃO

canetas canivetes ampulhetas com urina
batucadas em tom de bagunça universal
a chuva despejando sua carne suja de afecções
os rios noites e dias pedindo a poesia escapada
apesar das vozes sargaços e nozes profundas
além dos vulcões e dos amores e ameaças
clarões de estrelas brincando de fome galáxias
estepes de mundos ventres ninhos moinhos
espalhados como espelhos redondos religados
renovando distâncias flores tripas e mercados
perfazendo caminhos de abelhas e quimeras
unções bênçãos moscas e trevas ocas borbulham
raízes oleosas ramalhetes irrisórios beija-flores
adormecida ou entorpecida a vaga sombra anda
pula muralhas pousa em cafés e atiça silêncios
palavras palavras palavras buscam o branco
o nada nada nada corre parado feito um deus
e o poeta raspa o tacho dos mitos e se encontra
atravessado por todas as gerações e flechas
pois qualquer coisa que fazemos fica registrado
no campo elétrico dos trapos movediços cosmos
caldos de ferrugem para a política do destino
brumas de fogo sucos de luz feixes espalhados
segmento selvagem e híbrido do casamento de Blake
olhar do poema desconhecido sobre o ombro infernal
milhões de órbitas habitam o ser todo mestiço
cagamos e andamos para patrulhas e pulhas
na abóboda divina Dionísio comeu um santo
cuspiu constelações e crimes espetaculares
nenhuma balada se ouvia mas os tambores
tocando o pai o filho e mãe cansados da farsa
hortelã cheirando a estudante fugitivo da aula
chás de partidas experiências há muito tempo
cosmos meninas queimaduras e utopias
para levantar a carcaça todo dia e dá-làvida
peitos despertados adubados e flechados
gritos agonizantes e angelicais amém
vejo-me renascer naquele ovo sem data
pescar relicários e moedas inválidas
sapatos velhos e vetustas lembranças
nesse instante todo instante momentos
vagando sem calendário nem corolário
ébrio e visionário meu amigo poeta lida
queima as pestanas das leis com palavras
queima os pentelhos dos reis com palavras
todo o poder na encruzilhada do ser vários
ontens agoras amanhãs tatuados nalmas
dos arvoredos que raízam profundamente
e sorvem absortos dos céus alimentos de silêncio

 (Rodrigo Barbosa da Silva, 1979, Brasil, frb.silva@hotmail.com)

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