terça-feira, 4 de novembro de 2014

A Voz & o Silêncio: a geometria do espírito em Aorigem Diágora


      Escrito em 1987, Aorigem Diágora ficou vinte e cinco anos em silêncio, até ser publicada em 2012. Primeiro livro de poesia escrito por Jota Medeiros, corrobora a visão de uma poesia mais próxima das artes plásticas e da música do que da literatura. No entanto, é importante destacar que o poeta não se vale da proposição de uma poesia sem versos, como se poderia esperar de um artista adepto da Poesia-Visual. Ao contrário, a concepção de uma estrutura fragmentada que caracteriza esse livro/poema - mesmo valorizando uma organização metamórfica da matéria poética - não dispensará para sua realização o valor encantatório das palavras.
Uma das primeiras questões importantes que saltam aos olhos do leitor é a relação íntima e profunda entre forma e conteúdo, significante e significado, corpo e alma do poema. E se é verdade que podemos dizer isso de todo e qualquer bom texto poético, é certo que com maior ênfase dizemos de alguns. Nesse sentido, é de extrema relevância a dialética que percorre todo o poema, colocando toda forma e todo sentido possível num movimento análogo ao da respiração. Todo o poema revela um movimento de contração e expansão, imanência e transcendência.
Jota Medeiros cria uma sintaxe que extrapola o uso discursivo e avança pelo espaço das páginas valorizando o vazio, atomizando o texto e, mais que isso, as próprias palavras, criando imagens fragmentadas, ora dobradas, ora desdobradas. As palavras estão em movimento contínuo: partem-se, misturam-se, multiplicam-se, cruzam-se em todo o poema, e assim deixam de ser simples palavras para converterem-se em verdadeiras constelações semânticas.
Indagar qual o sentido de Aorigem Diágora não será demais, caso o leitor não espere encontrar uma resposta única e definitiva: a alta poesia é sempre plurissignificativa e enigmática. Portanto, sua compreensão lógica é certamente o que menos importa. Assim, à medida que indagamos seus sentidos, nos deparamos com múltiplos caminhos que podemos traçar na(s) leitura(s). O poema em si não conduz o leitor a lugares definidos, mas sugere um passeio pelo mar aberto da linguagem, com visitas a pequenas ilhas mágicas (ilhas de palavras e de letras), nas quais nunca conseguimos dar a volta sem ter alcançado já outro nível, como numa espiral.
Se é necessário dizer que na obra se desdobram as imagens em uma espécie de estado de delírio poético (êxtase), mais importante é perceber que o poeta não se entrega passivamente a essa inspiração, sobretudo por equacionar bem sua intuição com um labor artesanal de altíssima consciência estética. Segundo o próprio Jota Medeiros, o texto foi-lhe ditado por seu outro EU, num processo intuitivo e espontâneo, realizado através de uma matemática inspirada, termo caro ao poeta Ezra Pound.
Na composição da obra, o poeta se utiliza dos recursos mais diversos, com isso permitindo que o leitor tenha experiências também as mais diversas. Além dos efeitos verbovocovisuais e das relações simbólicas que trataremos de maneira sucinta nesta leitura, é interessante notar que o poeta faz uso das mais variadas ferramentas verbais da linguagem poética, tais como: o ritmo dissonante, as figuras de efeito sonoro, o enjambement, o paralelismo, etc. Tudo isso utilizado de maneira notadamente exemplar. O poema dispõe ainda de um amplo diálogo intertextual com as mais diversas vozes poéticas (Homero, a Bíblia, Mallarmé, Huidobro, Khlebnikov, Joyce, Drummond, entre outros). Sem contar com as personalidades artísticas mencionadas ou lembradas (Martinu, Mishima, Glauber Rocha, etc.).
Das várias experiências que a obra proporciona, comecemos pelo deleite visual. Um simples passeio pelas folhas do livro, por exemplo, sem que se leia ainda o que está escrito, proporciona a visualização de formas como colunas, retas, cruzes, círculos, triângulos, linhas, pontos, tudo se erguendo, ora despencando. Essas formas se espelham e se redobram no texto. Assim, a estrutura do poema lembra, em sua autossimilaridade e fragmentação, formas fractais, que se caracterizam pela repetição de determinados padrões e se ordenam a partir de procedimentos simples, desenvolvendo-se em formas mais complexas. Quando partimos para a leitura, percebemos que os mesmos processos de fragmentação e autossimilaridade acontecem no texto e seus múltiplos sentidos.
Tudo parece apontar para o caos, mas aponta para uma ordem anterior. Nesse sentido, logo surgem imagens sutis de elementos familiares à linguagem esotérica, tais como: a árvore da vida, a luz azul e a lilás, a rosa, o sol e a lua, o silêncio. Ainda nessa perspectiva, parece haver como fundamento de tudo uma espécie de existência negativa, sugerida tanto pela busca do silêncio, como, cabalisticamente falando, pelos reflexos da criação, fragmentados como o poema. O poeta evoca um princípio, uma luz, um infinito movimento primordial, o silêncio. E se os encontra, não é menos verdade que encontra também a inquietude da mente, as inquietações do artista, de âmbito cósmico e espiritual. O poeta mostra não como voltar ao centro, mas que não há centro, há uma elipse, um eterno retorno – nunca o mesmo em sua essência.
O título do livro já nos põe em um oscilante ambiente semântico, pois se aorigem quer dizer o obvio a origem, diz mais se lermos o a junto à palavra origem, não como artigo, mas como prefixo de negação, ou seja: não-origem. Esta, ao remeter-nos a uma existência negativa, curiosamente nos leva a pensar que, se o verbo é a origem, o princípio – ao menos no imaginário ocidental cristão –, o silêncio deva ser, portanto, o estado anterior ao princípio, ao verbo, à palavra. Nesse caso, paradoxalmente, pode-se pensar o silêncio como princípio gerador: o silêncio é o ventre do verbo. E, ainda nas raízes do imaginário ocidental, podemos nos aproximar da origem para os gregos, o caos – o vasto abismo insondável –, e aplicando o mesmo raciocínio da negação prefixada ao substantivo, nos deparamos com o não-caos, ou uma ordem anterior a tudo.
Completando o título do livro, Diágora remete à praça grega (ágora) – espaço público por excelência, símbolo da polis e da democracia – ou simplesmente a preposição e o advérbio: de agora. Levando a pensar tanto na origem, como na não-origem de agora ou de Ágora. O ímpeto inicial do poema é a vogal aberta a, que aparece com tonalidade clara, porém, crepuscular, azul, lilás. O Alfa, o princípio, mas também a negativa desse princípio, e a negativa do caos, de onde tudo surgirá. O poema segue com o segmento aor isolado no centro da página, fazendo lembrar aur, que na cabala é a “luz sem limites”, e ainda, segundo Papus, em seu Tratado de Ciências Ocultas, é também a primeira sílaba de uma variante de origem hebraica do nome de Orfeu - Aurofe (aur = luz / rofe = aquele que ensina).
Em seguida, o texto completa a palavra inicial [aorigem], uma das chaves do poema, com as partes separadas, cada uma em uma página – i e gem. O poeta já indica ao leitor que o movimento será em um ambiente fraturado, e que o silêncio e os espaços vazios são de suma importância. No fragmento seguinte, surge uma ideia de infinito no movimento da luz e na luz do movimento, e no eco da última letra da própria palavra infinito. Por outro lado, o poema parece se dissolver e encerrar-se justamente como esse eco. Mas, segue pela luzazul espelhada no palíndromo da página seguinte.
Interessante perceber que, assim como no título, em todo o poema se perfaz um dinamismo de forças complementares, dialéticas, em disposições aparentemente caóticas, como por exemplo, nas cores do xadrez fragmentado, equivalentes yin e yang, que são mediados por rosas.

a o r d e m
a o r
        d e m
a
   o r
   d e
         m
a    r
               m
o
r   e
x   d        z
e
r
o
s
a
s

            Mais ainda, percebemos no fragmento acima a relação entre o verbal, o visual e o sonoro. Neste último aspecto, Aorigem Diágora não é para ser lida apenas em silêncio, e poderá seguir o texto como uma partitura, com a liberdade de interpretar, partindo de uma leitura que reúna os segmentos, ou mantendo a fragmentação. No segundo caso – que preferimos e reconhecemos a dificuldade –, ao final da leitura surge o fonema /S / sugerindo uma das buscas desta Aorigem: o silêncio. Já a espacialização diagramática desse fragmento se assemelha à imagem da árvore cabalística da vida. Enquanto os sentidos podem ser buscados numa interpretação simbólica das palavras. Assim, o poema parece partir de um estado anterior à ordem: uma não-ordem­, em seguida aponta para uma luz (aur). Depois, desorganiza os elementos e, como fora dito no parágrafo anterior, sugere forças complementares mediadas por rosas que, simbolicamente falando, representam o coração e, entre outras coisas, o renascimento místico. Em certos ritos de iniciação, o neófito passa por uma espécie de portal, no qual cada lado representa uma das forças opostas da vida. O poeta, iniciado, atravessa, abraça e concilia essas forças.
Salientando ainda as relações entre o que o poema diz e como diz, temos no excerto transcrito abaixo, o sol em linha vertical e a luna no horizonte, lembrando uma cruz que, entre outras coisas, é símbolo da forma.

o
sol
verti
cal
alunano
rizon
tis

Permeado por uma mística subjetiva e antropofágica, esse livro de Jota Medeiros condensa conteúdos de diversas instâncias do conhecimento. O poeta cria um cosmo, e como uma espécie de demiurgo, fá-lo dançar em movimentos inesperados, anunciando, entre outras coisas, a noite na luz:

[…] night
       sea
    é ter blues
  in the light

      la lunadormecida
nasce,
       sob o signo
do
tropos, [...]

Há mesmo um processo de justaposição e condensação no poema. Inclusive, ao misturar diversos idiomas, Jota Medeiros instala em sua obra não uma Babel, porém um não-espaço onde as línguas e culturas se comunicam.   
Em Aorigem Diágora as palavras perdem o sentido comum, e junto dessa perda, dá-se um novo contato com as coisas. Surge assim um sabor de relações desconhecidas, através de uma linguagem-outra, capaz de também fazer surgir o silêncio que está no fundamento de tudo. No poema há diversos temas e o leitor deve acompanhar os deslocamentos temáticos como umbrevinauta, preparado para um caminho labiríntico.  Dos temas mais relevantes, um que se destaca, conforme viemos dizendo, é certamente o silêncio. Nesse sentido, é importante perceber as relações que a obra estabelece com o pensamento da tradição oriental (tais como Upanishads, Vedas, Zen) que tem a busca do silêncio como prática essencial.
Sendo assim, com os ouvidos atentos escutaremos os movimentos de um canto ora mântrico, ora dissonante, através do qual o poeta revela, ao mesmo tempo em que vela, algo como esse estado anterior à linguagem: o silêncio. O antes das coisas, mas embrião do mundo. Esse silêncio que não é o de quem nada tem a dizer, mas ao contrário, manifesta-se com o desdobramento do artista que, inquieto, talha, esmerila, pule a tagarelice do seu tempo, comunicando o incognoscível.


    o
                                                     s ‘ l
    ^
    n
    s
    ‘

____________________

     l

A apresentação do silêncio acontece em um lance mallarmeano. O jogo de dados que o artista propõe é, ao menos em certa medida, não um lance de um prestidigitador, mas um lance de bruxo ou de um mago das palavras. O lance sutil é o próprio silêncio, ou nele está contido:

    s

    u
   til

 an ce

____________________

     u
     m
l a n c e
s u b t i
      l

É também o silêncio profético das sibilas, metamorfoseadas em ilhas. Sibilhas que não são apenas apolíneas, mas, sobretudo, são também aqui dionisíacas. A profecia sibilina é como uma voz na América, esse novo mundo que nasceu com a chegada da morte, com o crepúsculo dos índios. Um mundo de horror, um oásis de horror. Em Aorigem Diágora transparecem nuances históricas que revelam a falência do projeto humano de civilização. Uma humanidade amarga e amargurada, sórdida, que não vê Hermes – deus da fertilidade, dos rebanhos, da magia, da divinação – pois ele foi roído pelos vermes:

      [...]
carcomidos
      por
   vermis
     ermi

         s
         ´
O silêncio como busca do poeta – busca paradoxal por natureza –, em uma humanidade fadada à tagarelice, que tem como histórico psicológico uma insondável diáspora interior. Silêncio de poeta a ver que as pedras que atravessam nosso caminho, não estão nessa existência, mas em uma anterior, e fez-nos perder a unidade, lançando-nos numa vida de erros. Essa pedra era um fruto e estava no meio do caminho. Mas o poema não se entrega a explicações tão evidentes e confunde o leitor ao apresentar tal pedra, tal fruto do erro e do pecado como coisa sã, assim revelando a natureza dúbia do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal:

[...]

uma
s
ã
num
eio
d
cam
i
nho

Logo percebemos que tudo no poema está em metamorfose, não é diferente com o silêncio que, em um novo lance, pode saltar do ambiente trágico ou obscuro e tornar-se o silêncio de quem se lança em um jogo sutil, irônico, desconcertante:

                                [...]         
       si não dar mais pra rir
             do
                 sil
           do si
             LANCE...

Conquistado o silêncio, ou degustado o silêncio, o poema caminha para o uso de ruídos sutis. O silêncio é vertido em vertigem, devaneio aparentemente caótico, que mistura contemplações de paisagens interiores densas e superpostas como esta:

  a
névoa
    voa
no
    vór
ti
     cís
mi
     co
    [...]

O poeta conduzirá o leitor, por todo o poema, nesse ambiente em perpétuo movimento. O poema canta e dança simultaneamente:

                              [...]
pelo sismo,
    ver
            ti GEM
var GEM
 vinACRE
  ventosopram
      os ares
         [...]     

Os versos acima parecem ter sido abalados por um sismo provocador de vertigens e anunciador de dissabores. Confirma-se aqui que o corpo do texto poético revela seu espírito. Corpoespírito, complementares, assim como o espaçotempo.
As paisagens vão mudando. E passam de paisagens contemplativas a momentos fragmentados de amarguras e absurdos irremediáveis da existência. Abrem-se fissuras em abismos para logo se juntarem em um movimento contínuo de ir e vir.
Há também passagens em que o indivíduo perde-se, e tende a evadir-se de si mesmo para fundir-se com o outro: “temencontrei só”; “voceu”; “time perseguem”. Aqui lembramos a experiência mística e poética de se reconhecer outro. Como o “Eu é um outro” de Rimbaud, ou os outros de Pessoa, por exemplo.
Agora, se uma origem não é mais possível, ou nunca foi possível, para o poeta o não-lugar e a não-origem são seu espaçotempo. Nesse espaçotempo a metamorfose é fenômeno constante e princípio básico da existência. Exemplo disso no poema é o percurso cíclico da ave que se transforma em árvore, representação da criação e da vida, e que em seguida passa a ser ninho e o próprio ovo. Veja-se ainda que a força vital que perpassa ciclicamente a vida ergue-se também em coluna, viril e ereta, representando a força erótica:

    a
              ave
              vér
              teb
              r’a 
              ver
                  ă
              rvo
               re´
              rót
              ica
              mi’
             nhã
   u
                                       n
               inh
    
    o

A progressão estética de Aorigem Diágora se dá como o relâmpago cabalístico, que visualmente falando, ora ziguezagueia, ora ergue-se como coluna, ora voa como alas abertas num movimento em cruz. Aqui, Medeiros sonda o verso, a palavra, a letra. É assim que parece buscar essências em tempos de superficialidade e simulacro. Mas essas essências aparecem como feixes de luz que mudam suas cores, ou simplesmente como névoas. A controversa origem do Ser dá-se em uma não-origem (aorigem), e não apenas em um lugar, mas em lugares superpostos, simultâneos. A Ágora está na veloz cidade que é Ítaca, migmar, Paris, El Doirado? Todas e nenhuma, mas certamente em outro lado.
Vale salientar que essa leitura é uma ponta do iceberg do poema que se desdobra e não permite uma interpretação única.  Porquanto, caso o leitor procure um entendimento profundo e metafísico, e já não o tenha em si, provavelmente encontrará um efeito metasísifo, a comprovar os versos – depois das mais astutas peripécias (até mesmo a de enganar a morte?) – despencando por sobre si:

                                                 [...]

    sede senlaçam sob/re
    os  luares  metasísifos
  destes

                 verbuns

Que o poeta seja um demiurgo em tempos sem deuses! Que execute com sua força e criatividade um novo cosmo, anárquico e autêntico: eis o grande desafio, sempre antagônico em relação ao mundo comum – tão carente que é de autonomia individual. Esse mundo continua sendo hostil à poesia. Por isso, é também como resistência e provocação que o poeta – locomotiva descarrilhada em direção à luz – pronuncia seu canto dissonante, seu mantra polifônico, filtrando o ruído do mundo, desenhando sua busca do silêncio:

    trem’
     luz
    plum’
            argemmm
          mmmmmmm
     mmmmmmmmmm
             mmmmmmmmmmmmm
         mmmmmmmmmmmmmmmm
    mmmmmmmmmmmmmmmmmmm
           mmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm


Rodrigo Barbosa
Primavera de 2013



Jota Medeiros. AORIGEM DIÁGORA. Sol Negro Edições: Natal, 2012.

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