Ilustração de Binho Duarte |
DE POEMAS
I
atravessei o núcleo numa carreira e nasci
dançando
repuxava os bicos seios de minha mãe
atravesso as trevas
escapo longe
o sol doura o corpo quente meu primeiro dia
barrento coração rebenta violentado em luz
II
POEMA DE UMA TARDE PRIMAVERIL
calor da tarde e voz de Nico
suave como o suor da primavera
tenra deleita também na mente
o bom do fumo de todo dia fumado
o que há pra fazer há pra desfazer
nesta tarde quieta nada tarda
nem o lírio no jarro ao lado
nem o cacto que nasce no peito
III
à noite a dama doce amada suada dorme
ao fogo seus cabelos consolam seus olhos
nublados abrandam meu olhar.
à noite as coisas tiveram num falo de sorte
o entrelaçamento das volúpias
e a pulsação única do mundo.
o talo verde namora o aroma da rosa
essa doce menina de corpo infinito.
IV
GIRA DEUS
Gira deus no dormitório dos monges
no toalete das freiras
nas esquinas dos bêbados
nas tocas dos maconheiros
gira deus nas faces insones
gira deus nas orações da noite toda
nas bundas das desinibidas irmãs
gira no girassol
gira sol e girassol é meu deus
e girassol é meu olho inclinado ao acaso
ao descaso da vigília
gira deus
e me encontra nessa desordem de coisas
onde tudo pira
onde tudo gira
ave maria gira e traz meu espírito de volta
deve tá na china
ou ainda pior deve tá na oficina de deus
concertando o volante
zerando o cronômetro e o velocímetro
ou aporrinhando os santos
gira deus na chuva debaixo da luz amarela
por cima da chuva por cima de mim e em mim
gira deus em tudo.
DE O JARDIM DE SOLOMON
V
sou adepto incondicional
da reeducação através da intuição espiritual
creio em religião não em dogmas
às vezes sou como um intranquilo demônio
mas
sempre
apaixonado pelo frenético pensamento-amor por todas as coisas
sei que coisas diversas somos
coisas órficas,
coisas mergulhadamente caídas
coisas relativamente absolutas, unicamente indefinidas
inconfundivelmente em giro eterno
coisas épicas e de absurdas aventuras
adventos do rio de sangue, adeptos do eterno amor
do agora e sempre no vácuo
da expedição
cegos centauros do grão da palavra
que brota como humano-dragão-besouro-de-deus,
como sol tangendo instrumentos mântricos
em lâminas e flâmulas de alegrias
imitando nuvens,
como pássaros em voo pleno
vagando em brisa & o assovio do vento
& o trovão da bênção
VI
equinócio
no jardim, flor
de quenopódio
te ofereço a ti
virgem maria
incensando canabis,
heras terrestres,
mãe protetora
com suas orquídeas e alquimilas
rosa, romã,
mãe preta
branca flor
de lírio
mãe maria minha
flor dos céus
flor das águas, flor das terras
das serras e serrados
flor do deserto, do pico da montanha
e flor até do meio do asfalto
com tua graça o sol derrama
em nossa cabeça sua barba
e nosso horto floresce
e a palavra da morada
deságua de tuas fontes
somos as árvores de tua bênção
ó virgem trepadeira
que sublime sobes pelos galhos
dos nossos membros até os frutos
bagas dos olhos corações alma
VII
há n’alma do cosmo um rio
em vidas muitas, que de vez
em quando, noite ou dia, insiste:
conduz como comboio de navio
em número de mil vezes mil e dez
as estrelas que viste
o abismo entre teus ombros foi
que caminhou teu coração e fez
verter em vinha o triste
DE FLÂMULAS, HIDRAS & COQUETÉIS
VIII
ÓRFICO DE UM JARDIM
encontrei Rosa
entre vetustos sonhos
vestida e despida
pelas estradas errantes
transpirando como timbre noturno
atraindo meu olhar para as vielas
labirínticas e sincrônicas
dos mais lúcidos vestígios do salto
na sombra do jardim onde carvalhos
nos campos estelares por onde passamos
louco cálice transfigurando
como numa revoada
rajada de chamas pelos cantos tântricos
e o trago lá onde se deixa brilhar quanto quiser
e a língua não prende mais o transformar
nem as asas do gavião da mente
nem o olhar atraído pelo ímã
e pela guelra da poesia contínua
ecoando feito aquele sujeito
que disse que não existia
e mesmo assim
foi dormir depois de beber
uns bons tantos tragos de cana
e amar loucamente como selvagem
na mágica noite toda escura
uma voz doce havia anunciado
e ela veio caminhando do sertão
marcando o chão com sua sapatilha
de mira-celi ascendente
por ser aquela que me dá
e ressoa os cantos e os gritos de todos
de séculos sem fins
de pálpebras e pensamentos
expulsando os troncos brabos
que eclipsam nosso olhar
e assim com as sombras
de algumas filosofias
os lívidos lábios da amante
me plantam e me lançam
pelos lençóis misteriosos
da vibração e galopes da
existência
IX
Eu me envolvo no fértil acalanto desse povoado jardim
Disperso e ansioso pelo caminho de copas e sementes
O vermelho talha tua boca para lançar-se em palavra-sendo
Alimento da criança órfã e poetas e estrelas comunicantes
Labirintos trilhados pela formiga e o fio de seda de Salomão
Explosões em visões alçadas e lançadas por trevas e clarões
Estrela negra e o surdo murmúrio do rio em curso
Galos oboés e entalhos prefaciando o livromúsica
Saltos soltos despojos arrancados pela Rosa mutação
Ciclones em cinturão e batuques em Batá na Pedra de Raio
X
TRANSMUTAÇÃO DA PRECE
cachoeiras de cabelos línguas lâminas
para ter o feixe faísca da poesia peixe
para ver o raio gentil caveira em ouro
olho profundo borbulho de sol estômago
palavras relâmpagos pureza inatingível
lâmpada flâmula roubo da morte
cravo em chama leva e levanta luzes
musa mundo amor abismo rodopio
viola rebentada em corais e cores eternas
o fantasma escova os dentes do violino
no clavicórdio espólio dos gritos santos
tristes motéis de anjos com asas de fogo
música muda musa lúdica musica via luta
semeia sonhos em sexos e favas vendavais
pentelho coletivo coração de girassol e tesoura
bicicleta flutua lulas estrelas subindo árvores
espírito da mosca masca céu em dinamites
pernas soltas atravessadas pelos olhos de deus
XI
O MENINO E O PAI
O menino viu o Tathagata no mato
o pai desmentiu
disse que era bicho
disse que isso não existe
“Deus é Deus e tá lá no céu...”
O menino silencioso riu
Estava vendo o Tathagata
Onde quer que olhasse
Estava vendo o Tathagata
XII
PIPOCA COM MOLOTOV – PARA SER RECITADO ACOMPANHADO POR UMA
GUITARRA ELÉTRICA E UMA FLAUTA FRENÉTICA
aos saltos altos
desses pipocos ditos
aos claros brados
aos limes vermes
palavras achadas à lança
alvasa ovosso
estourestrondo explode
esforço espaço espesso
nada dessa arca ressaca
arcabouço
burocratas
saladas de gravatas&granadas
nos baste o estilete do pixote
e os archotes e arrebites da palavra
e as bestas e os anjos
com os rubros cintilantes ópticos
mantenham os pentelhos arrepiados
e os arredios esparsos da força
da pata do cavalo
na imaginação pisoteando
os miolos deveras
maus&politizatados
XIII
MIRA-CELI ROSA ME EXPULSA DO COTIDIANO
se tuas tranças efêmeras transformam minha palavra
se a ti devoto relvoso segredo galáxias e vorazes vertigens
se a flauta sopra tuas sobrancelhas curvas do mistério
se em vez de violinos teus lábios e olhos umbigo girassol
se nuvens dançam grávidas o leite plasmático de lúcifer
se o esquecimento aquece tua flor em tantra e sangue
se o osso da luz é cúmplice da vela e da treva perene
as palavras abandonadas roem tormentas na rede suja
pássaros tráfegos de estrelas borbulhantes de fogo
se teu absurdo reinventa a luta e escolhe o jardim
se tua boca cálice de tantas vozes serve a noite em taça
se é melhor suportar o peso das estrelas do que da cruz
o lençol do piano lança luzes espermáticas no espaço
o silêncio dança indecifrável chuva gozo luz de lamparina
as luas estão cheias de rastros mágicos e no ar partituras
música ruptura de sapatos gravatas casa e supermercados
XIV
JUVENILIS E TERRORISMO POÉTICO
flâmulas & hidras
& coquetéis molotov
tarântulas & mirras
& bordéis com orloff
tâmaras & águas
& poesias sem páginas
trapos & risos
& viagens a pé
cãnhamo & rouxinóis
& saravá axé
XV
TIRINETE PARA PERCUSSÃO
canetas canivetes ampulhetas com urina
batucadas em tom de bagunça universal
a chuva despejando sua carne suja de afecções
os rios noites e dias pedindo a poesia escapada
apesar das vozes sargaços e nozes profundas
além dos vulcões e dos amores e ameaças
clarões de estrelas brincando de fome galáxias
estepes de mundos ventres ninhos moinhos
espalhados como espelhos redondos religados
renovando distâncias flores tripas e mercados
perfazendo caminhos de abelhas e quimeras
unções bênçãos moscas e trevas ocas borbulham
raízes oleosas ramalhetes irrisórios beija-flores
adormecida ou entorpecida a vaga sombra anda
pula muralhas pousa em cafés e atiça silêncios
palavras palavras palavras buscam o branco
o nada nada nada corre parado feito um deus
e o poeta raspa o tacho dos mitos e se encontra
atravessado por todas as gerações e flechas
pois qualquer coisa que fazemos fica registrado
no campo elétrico dos trapos movediços cosmos
caldos de ferrugem para a política do destino
brumas de fogo sucos de luz feixes espalhados
segmento selvagem e híbrido do casamento de Blake
olhar do poema desconhecido sobre o ombro infernal
milhões de órbitas habitam o ser todo mestiço
cagamos e andamos para patrulhas e pulhas
na abóboda divina Dionísio comeu um santo
cuspiu constelações e crimes espetaculares
nenhuma balada se ouvia mas os tambores
tocando o pai o filho e mãe cansados da farsa
hortelã cheirando a estudante fugitivo da aula
chás de partidas experiências há muito tempo
cosmos meninas queimaduras e utopias
para levantar a carcaça todo dia e dá-làvida
peitos despertados adubados e flechados
gritos agonizantes e angelicais amém
vejo-me renascer naquele ovo sem data
pescar relicários e moedas inválidas
sapatos velhos e vetustas lembranças
nesse instante todo instante momentos
vagando sem calendário nem corolário
ébrio e visionário meu amigo poeta lida
queima as pestanas das leis com palavras
queima os pentelhos dos reis com palavras
todo o poder na encruzilhada do ser vários
ontens agoras amanhãs tatuados nalmas
dos arvoredos que raízam profundamente
e sorvem absortos dos céus alimentos de silêncio
(Rodrigo Barbosa da Silva, 1979, Brasil, frb.silva@hotmail.com)
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