quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Do Buriti ao Sangue, de João Antônio Bezerra Neto

capa por Ângelo Rocalli
Capa de Ângelo Roncalli

Já ouvi de João Antônio vários relatos de suas viagens e narrativas detalhadas do Maranhão, da região do Meio-Norte do Brasil e sua terra natal, das encantarias, dos crepúsculos, dos mirantes e dos rios, da magia e do Bumba-meu-boi. Gostaria de dizer que nossa amizade nasceu pela via sonora das guitarras do grunge, do grid, do hardcore, do punk e pós-punk e do metal.

Poeta viajante e comunicativo, costuma descrever suas viagens, descrever situações e fazer análises ligeiras sobre casos corriqueiros e inquietantes. Ao publicar o seu primeiro livro de poemas, Do Buriti ao Sangue  (Sol Negro, 2020), vejo dentro da alma desse poeta a figura de um etnógrafo, pois poesia e etnografia parecem se misturar; não porque esse poeta esteve entre uma etnia longínqua, fazendo qualquer tipo de pesquisa, mas porque esteve deslocado dentro de sua identidade, formulando-se dentro da mata. Suas descrições da natureza parecem trazer o real, a aterrissagem no sentido de aterrar-se. A mata, a floresta, surgem, por exemplo, como “o licor do caos”, pois sabemos que o Caos precede a ordem e essa identidade descolada é ao mesmo tempo a busca do autoconhecimento.

Precisamos de experiências oníricas, somos seres imaginários por natureza, e, assim, a experiência poética (religiosa também) traz o significado e o simbolismo necessários para reorganizar nossa existência, já que fomos marcados pela violência colonial. A experiência com o “cipó dos mortos” nos faz enxergar a cruz, a violência, os túmulos dos indígenas sob a terra, imagens que se destacam nos poemas do livro. 

Uma vez provei da bebida amazônica, Ayahuasca (um de seus nomes), também vi covas abertas e sem flores, imagens e signos nos quais o poeta mergulhou. Nós, humanos, nos orientamos por dualidades: dia, noite; sol, lua; yin e yang. Para os orientais e afro-brasileiros não há distinção nesta dualidade, enquanto que para certos raciocínios do Ocidente há o dualismo irreconciliável. As religiões afro-brasileiras e ameríndias, sobretudo na cultura maranhense, expressam as contradições sociais do choque colonial, anjos, indígenas, a mata e uma estética histórica, europeia.

A cidade de Caxias, evocada nos poemas, é reverenciada pela sua arquitetura de herança portuguesa, suas igrejas, pela Guerra da Balaiada. O poeta recorre à infância e a elementos da história do lugar para elaborar um discurso entre o saudosismo e a crítica. Temos a nostalgia da infância, do locus revivido.

Do “deus-sórdido” à Procissão do Senhor Morto, a aventura e desventura do poeta não o deixa largar sua religiosidade, construída na infância e depois eventualmente sacudida pela rebeldia. Que bom que o poeta João Antônio lida bem com a religião (re-ligare), quero dizer, ela não o marcou traumaticamente. E a morte percorre seus versos como signo maior de que o caos continua imperando entre suas memórias, viajante inquieto e solitário, pois eu o conheço, e é assim mesmo!

Nesse momento de crise política, nesse caos em que estamos vivendo, procuramos o encanto, recorremos à arte, a alguma revolução, recorremos a qualquer coisa que possa nos salvar, nos tranquilizar, mas não sabemos como nem o quê, recorremos aos movimentos, onde estão? Mas estamos vivos e a Poesia está presente em nossa vida, como força revigorante, para nos mostrar caminhos, fugas, saídas.

     Do Buriti ao Sangue expressa justamente essa força que podemos encontrar na natureza, na terra, nos matagais, nas fontes indígenas e no “sangue do cipó”.

Luís Felipe Cardoso Mont’mor
Professor e Mestre em Ciências da Religião pela UFPB
Treinel de capoeira Angola no grupo Angola Comunidade