DE JUVENÍLIA
O ACENO DAS POSSESSÕES
uma coluna cinza clara de perfume festeja seu silêncio
no horizonte
no momento em que lástimas soltas alimentam um pranto
de papel e sou um urro
em desalinho
as percepções ativas ferem o olho nu
crises escutam sentadas os
desatinos do
porto
cães atravessados por automóveis
bailam
entre um extremo e outro jovens espancam
um oceano de lamentos
uma febre de néon suspira uma agonia de luz
uma cólera de possibilidades enforca os fetos
do destino
vermicidas oxigenam
pulmões
mentes florescem como chagas
no intestino grosso das
metrópoles
LUGAR – 1999
foi na Ribeira que tive minha última obsessão arcaica perseguido por policiais como um cão
o esqueleto arquitetônico da rodoviária velha era um imenso abrigo de sombras
nas esquinas velhos assistiam desiludidos crianças com olhos fundos de pedra
festejos ruidosos despertavam as almas dos casarões abandonados
para andar novamente nas calçadas de mãos dadas
quanto tempo caminharão sem que um de seus becos lhes confisque o abrigo
sem que devaneiem em atrativos devassos
antes que o cais afogue mais um suicida
antes que cesse o alarido da multidão
antes que paguem o preço do dia
quanto tempo de noites maldormidas onde
ruas estreitas eram o palco imundo de festejos rítmicos
em que paredes e prédios aos pedaços sugeriam segredos nos ouvidos atentos
que fazem essas sombras com confidências antigas?
ah como deve ter sido diferente quando aqui tinham vida esse batalhão de casas
e agitavam-se suas praças sob
o encanto da novidade
suas ruas urravam cheias de lixo pessoas carros carroças marujos putas políticos
artistas anônimos e indiferentes
o barulho ensurdecedor do porto
como um discurso constante
a gritaria dos bêbados
o sufocante pudor feminino
os bares como pequenos infernos
correria de bondes equilíbrio de guindastes baforadas de navios anjos de remos
tudo isso hoje está esquecido em olhos brancos
sua alma sufocada pelo bafo oficial
seus ossos abertos em fraturas
seus dias deixados
à caridade das chuvas
torcidos pelo sol quente
sua tarde acabada por perseguições noturnas
seus amores desconfortáveis como os mendigos de suas fachadas
sua voz apenas o ronronar escuro de suas águas profundas ensinando que a distância impõe o
silêncio
agora que estou longe de ti impelido por imensidões abruptas me pergunto quando
esquecerei tua face escura índia velha e quando poderei por fim às lembranças de seus
demônios e criaturas noturnas destilando espetáculos narcotizados para minha presença
descontrolada – e por mais quanto tempo ainda lhes serei grato
CLARÃO
a brisa trazia pesadelos nos cachos ao redor do rosto
eu era perseguido por luminárias, pelos paralelepípedos
e línguas de fogo ardiam abarcando o céu e o barro
o meu último movimento arrastou-me e apagava estrelas com a minha
sujeira despregada
eu te ouvia dizer as coisas mais santas com as palavras mais sujas
e um batalhão de recém-nascidos repetia pela sétima geração os refrãos
paternos para o meu desespero tentando em vão
aprumar-se na calçada de
partida
meus olhos vagos vazados por uma asa de borboleta
(ganho suas cores como consolo)
na árvore pousa o caminho do vento, meu mapa
a sombra caminha definida em torno com o sol
retorna com ele em torno à coluna
observo extático as caretas da estátua
mãe magnânima de todas as praças
de que valem seus nomes?
estou assombrado pelas suas maneiras
são tormentas amontoam montanhas partem vales
POSSO VER
há vinte e cinco mil aves distintas
ao meu redor comendo centenas de centopeias escuras de dez olhos
e inúmeras patas sobre o prato do meu crânio bipartido
fui um poeta manco um aprendiz de feiticeiro um surdo um cego
desmistifiquei o escuro tive todos os defeitos e agora
fui hospitalizado para transferência de vestes
desnorteados sinais sem trânsito
dispersam luzes epilépticas
se debatendo pelas suas faixas
que marcam laboriosamente minha idade
É O COMEÇO DE UMA NOVA E POSSÍVEL ASCENDÊNCIA
DE ATHANOR
I
na primeira alvorada de verão
o voo inverso da semente primeva
a morada abobada ampara num caminho repartido
em meio à planície onde as árvores
calam como vales &
o vento vertia o rio
trezentos homens de palha incendiavam corações de alumínio
estalando como o sol
a tempestade não me dizia mais nada a ventania
não me dizia mais nada o trovão não me
dizia mais nada o teu olhar parado perdido
na radiante manhã de um domingo
cercados pelos pequenos e ressurgentes seres das
horas amenas & manhãs orvalhadas
ah minha breve irmã do rosto esmaecido & sob
o sol fervente quem elevará teu suspiro?
o universo nos traz o fogo & desejamos o
abandono e no entanto somos nós ígneos
ardentes negros & cegos arrastando a
multidão crescente a multidão crescente
como o grito a multidão nervosa
febril & apressada com o vazio invisível
do bote repartido
sangue de concreto nas estruturas do prédio
ossos de cimento nas entrelinhas das torres
homem de cerâmica descarrilado do tempo
fervilhão desameno do desencontro anjo-morte
muro extenso guardião da desordem
b a l a n ç a i
III
Anarcopunks em círculos
ao redor da Praça Vermelha
professores universitários
negando a realidade
das musas
(fiéis amantes das Danaides?)
ninfas-caranguejo
nos manguezais ocupados
pelos Kãos
do Kaos
tráfego & transe
imóvel da cidadela
alucinada automóveis em filas prédios encaixotados
parques uniformizados uma jovem criança
invadindo a avenida
desmantela o trânsito todo
da metrópole
VII
meskhabah-carrocéu
cerco
sono sem tempo ou sonho
realidade/concreto
mar aberto & Odisseu
düsendorf
caleidoscópio & takes
partidos
cemitério lunar
suntuosa sinfonia fúnebre
fear death by water
I see crowds of people
walking round in a ring
cittá. sítio.
cité city arco-seco
IX
é Bloomsday em Natal
e as flores somem
nos botões não postos
levarão dois meses
ainda
para o primeiro dia quente
após as águas
induzir as orquídeas
aos primitivos rebentos
abrindo veredas nos caminhos
e dezembro queime definitivamente as hastes
e faça luzir as faces ausentes
que os ventos de agosto
cobriram antes de terra
e poeira caiada da pele
XI
No retrato negro do cisne
me tragam o mirante
da igreja do rosário
pavimento
entre o azul do vento
e o branco-verde de barcos
escumas folhas & sais sobre
a superfície das águas
lento anoitecer sob o Potengi
desalmado das almas
luzes ao norte luzes ao centro
XIV.I
O Buddha da beleza afogado na cabeceira do rio Pitimbu
ouro-aúreo escorrido
esgoto & merda
no Villaggio Verità
medusa encantatória. usurária
funcionários enclausurados. meninos-milicos. vigilantes
viris amantes
das madames. vidro negro & espelho
arame & grade
insígnias
insignificantes
& pavorosas ilusões
de nenhuma eternidade
AIII. DA PONTE À CABEÇA. LINHA ASCENDENTE.
hidris hibris ísis íris d’água chuvimóvel corrida lalga-lava arcoadouro translucedendo de céu feixe prismespiralado tapando a redoma linha d’água finerrante ao longe ondante pater núbem andaste diante de mim a claridade ferindo a pétrea férrea do olho carregando o filete lunar antes de minha vez de levantar-me caminhei cego pois não enxergava meu guia Lúiz prima palavra enxergo-te claro discernido entre o fundo de vultos indistintos distante do funesto Averno alvo & lúcido de pé perante o umbral e recobrado à esquerda do caudal de mnemosina a saia do sol arqueada no zênite de nossas cabeças viajor & navegante encontraste o cetro nos confins soletram vogais silêncio de vácuo & verbo guardiões palavra prima vale imóvel tez temida distante aos montes um em tudo é deserto & fome aridez soprada desolação & sede sem remédio & pelo aroma seco de seca ensolarada desejamos o lago em ardência & o distante mais longínquo juntador áspera & dura ríspida & intolerante se entremeia do convívio dos homens brutalidade & violência sem rumos hibris hidris serpe espiralada balsa branca & risco de vento percorrido pelo remo ísis batido da areia quando o turbilhão centrifugia cavalo selado do mar amianto & tormenta ante a baia branca trespassada de vidro moído albalar stella remirada quem refletirá o luzir cada grão de areia esmeralda láctea descendo lenço alvo jorrado da cabeleira fecunda de Berenice via realçada & mãe d’água torneando entre bafo espesso & rio escuro grifado de dragão crucificado rosácea alada roseta atada aos eixos repartidos rosal corrente rosa dos ventos rosário & vitória-régia meridiana às asas vermelho & verde rubro rubi mergulhado nos lençóis largos de rios & reentrâncias inavegadas torneio vazante & cheias ressurgindo finirrumo reabrindo coberta cíclica torneante balsa dos amantes cortejo fúnebre & vibrante de união pai apossar-se da mãe & mãe ceder ao pai espada flamante lâmina mercurizada cetro & centro coroa & reino reunido corama repartida laço ligado à testa cabeça copulando cauda coluna alinhavada animal fúlgido refulgente veio reatado o rio mudava a pele o corpo retornava à pedra trabalhada corona derramada leito de lona desfazendo pedaços de ossos asas de borboletas sem peso sustem o primeiro movimento percutido aluminante pássaro-branco partindo de eixo híbrido à fonte refluída riodemo erguido a levantar o fosso engolfa trago ardente pedregulho labareda d’água folha despetalada em flora incandescente de caju igapó braço solar de veio escuro ascendido peixe lagarto dragão recorta volta de voo os ares fendendo areia & parte luz transfigurado parte & paira sobre a cidade aberta reconhecida ruída sobre a face do vórtice volteante de águas íris hidris hibris corrente fechada
DE O BALÉ LETAL
X
quando anjos aleijados decapitarem a boca aberta das trombetas
quando clarins incendiarem a nudez numa vegetação
quando a campânula estrebuchar num arco de chuva
as caravelas se abrirão num largo
e as amantes se enforcarão em claras flores de lótus
estampidos e paradas se baterão pela planície
o orvalho virá fecundando a tormenta ou a terra
a ruína do mar e o arrebentar-se das pedras
louvarão essas vacilações do espírito
minhas anarquias, meus demônios
IV
cabeças de prédios decepadas
no largo
espaço azul
de manhã é um rasgo claro
para o olho aberto
eu preciso ouvir a criança
órfã regenerada
por Orfeu
sua vingança
V
os deuses se retiraram
nada mais nos une
mas o signo ainda
manipula o mundo
é razoável assentar
o céu, para que não percamos
a medida da esfera
ÓRFICA
I
a flor de lótus escurece as pétalas de fogo
incendiadas pelos braços d’água e a lenha
da aurora acende as linhas de corais
II
biosthanatosbios
sêmem branco
sobre negro
sol noturno na escuridão
nada mais anoitece
só o carvão acende
seu corpo em chamas
sob o enxame das almas
semeadas na espuma
III
densanoturna e noturnasolar
a virgem mãe senhora marinha
entre éguas e ovelhas cadelas
e chacais cruza com um archote
a estrada de estrelas
com ramos de ciprestes
em direção à cidadela do
condutor da carruagem
três serpentes lhe cobriam
cada um dos rostos
XII. O BANQUETE
sonho em morrer assassinado & despedaçado por um bando de meninos &
meninas seminus num assalto Violento & Inesperado tendo em seguida minha carne
devorada num Grande & Alegre repasto comunitário. Essas novíssimas
Crianças Selvagens fariam parte de um golpe mundial
para extinção do poder através de sentenças de morte coletivas para todas
as pessoas maiores de 12 anos por crime de tornar a vida impraticável.
todo adulto ou adolescente foi considerado culpado pelos seguintes crimes:
- destruição do que se podia beber no Planeta;
- permissão às luzes para apagarem Vaga-lumes & Estrelas;
- povoação do globo por latas móveis a motor;
- por matar as geleiras de calor;
- por tornar o ar respirável apenas para chaminés;
- por ordenar à Polícia Kármica a perseguição do Poeta;
- por pronunciar ou mesmo pensar a frase: “Mas este foi o mundo em que eu nasci!”;
fora decretado o Dia Internacional da Poesia & Bagunça Transcendente & Anarquismo Pampsíquico
Homens & Animais & Plantas & Pedras eram Gente nesta nova e pequena Humanidade
(o encolhimento da população resolvendo o problema do espaço)
todo dia era domingo (o mesmo que dizer sábado)
proibiu-se o tempo e aboliram-se as formas futuras e passadas
anularam-se as nacionalidades e as classes sociais
todos os tipos de Vícios & Virtudes eram permitidos
desenhos eram encenados ao ar livre, sobre a carcaça dos televisores
todos pagavam suas mercadorias com seu melhor sorriso
extinguiu-se o legal e o ilegal (todo local fora decretado universal)
o dia permaneceu dia, e a noite, noite
os pobres tiveram de ser eliminados, porque só queriam ser ricos
todo som era considerado música
aos de tendências filosóficas e reflexivas foi preciso expulsar
os muito velhos & os loucos foram poupados por serem Sábios & Bobos & Desinteressados
assim como as mulheres da vida, que podiam gerar Filhos & ser Mães para todas as Crianças
o mais inocente erotismo os unia &
eu morreria satisfeito como um ancestral rei francês nessa contemporânea
queda da bastilha – deformado em cinzas
como Dionísio – e por fazer parte desta última Geração Negra
que indiretamente e por reação
incitou a revolta
(Márcio Simões, 1979, Brasil, mxsimoes@hotmail.com)
Acredito na poesia como veio transgressor da aceitação do comum, do instável, do igual.Adoro ler suas poesia, poder ver as imagens que você consegue captar,os planos que você transita, a familiaridade e ludicidade da linguagem...
ResponderExcluirTamanho dom meu amigo, DIVINO!