quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Campos de Carvalho │ O Púcaro Búlgaro

Poty
 Excerto da obra-prima O Púcaro Búlgaro do escritor Campos de Carvalho:

13 de novembro
  
Fui ao psicanalista e ele me fez deitar num divã, sem o paletó, a gravata e os sapatos.
– Está se sentindo confortável?
– Muito. E o senhor?
– Desaperte o cinto.
– Quer dizer que já subimos?
– Limite-se a responder. Feche os olhos, procure concentrar-se.
Fazia um calor dos diabos, e de repente me veio uma vontade louca de urinar.
– Já pensou alguma vez em matar o seu pai?
– Muitas. Mas, se o sr. me permite, eu gostaria de urinar.
– E sua mãe, já pensou em possuí-la alguma vez?
– Isso nunca; sempre tive namorada firme. Mas eu gostaria de ir urinar.
– Tem irmãos ou irmãs?
– Que eu saiba, não. Assim de momento é meio difícil...
– Gatos? Cachorros?
– Se o sr. não me deixar ir urinar, não respondo – nem respondo pelas consequências.
E depois que eu voltei do banheiro:
– Quantos dedos o sr. tem nas mãos? Não, não pode abrir os olhos.
– Dez, até chegar aqui pelo menos.
– Responda depressa: se ponho vinte e duas melancias nas suas mãos e depois tiro cinco e acrescento três, com quantos dedos o senhor fica?
– Vinte. Contando os dos pés, naturalmente.
Em que ano estamos?
– 1963.
– Século?
– Vinte.
– Antes de Cristo ou depois de Cristo?
– Que Cristo?
– Não faça perguntas, já disse. – O mar é vermelho ou é amarelo?
– Depende. No mapa lá de casa, tanto o Mar Vermelho quanto o Amarelo são azuis. Da minha janela às vezes ele é cor de abóbora.
– Qual o oceano que dá para a sua janela?
– O Atlântico, isto é o pacífico.
– O Atlântico ou o Pacífico?
– Assim o sr. me confunde. Nem eu vim aqui para me submeter a prova de geografia.
O homem foi até a janela e cerrou calmamente as cortinas.
– Agora vai dizer em voz alta, e sem pensar, tudo que lhe vier à cabeça. Relaxe-se o mais possível e nada de escrúpulo.
– Escrúpulo. Cabeça. O oceano é azul. Que calor está fazendo. A morte de Danton. As metamorfoses de Ovídio. O senhor é uma besta. Com quantos paus se faz uma canoa? Vinte e um, vinte e dois, vinte e três, vinte e quatro. As laranjas da Califórnia são deliciosas. Umbigo. Rapadura. Otorrinolaringologista. É a tua mãe, mulher, nua, vou pra Lua, jumento, para-vento, dez por cento, Catão, catatau, catapulta que o pariu, catástrofe, caralho, os medos, os vegas, as vegaminas, as sulfas e as para-sulfas, diametilaminatetrassulfonatosótico, porra de merda, argentino, argentário, testículo, laparotomia, Boris Karloff, Irmãos Karamázov, Irmãos Marx, Marx, Engels, Lênin, Lenita, onomatopeia, onomatopaico, onanista, ovos de Páscoa, jerimum, malacacheta, salsaparrilha, Rzhwpstkj, Celeste Império, semicúpio, Salazar, sai azar, seis e vinte da manhã, Dadá, Dedé, Dodô, Dudu, holofote, oliveira, olá Olavo, Alá, ali, alô sua besta já não basta?...
– Basta.
O sábio agora me olhava atentamente, o lápis suspenso no ar, o bloco de papel com rascunhos sobre o joelho. Sua máscara traía uma grande inquietação, como se temesse alguma coisa ou já começasse a pôr em dúvida a minha sanidade. Até que, simulando uma calma absoluta, arriscou com o ar mais natural deste mundo:
– O senhor já foi à Bulgária?


Campos de Carvalho. O Púcaro Búlgaro. Ed. Civilização Brasileira S.A. 1964. p. 26-29

3 comentários:

  1. Olá.
    Adorei seu Blog.
    Estou te seguindo...
    me segue?

    beijos

    http://rgqueen.blogspot.com/

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  2. Caralho !
    Muito bem vinda esta nota sobre Carvalho.
    Ele é o tipo que poderia ter dito o dito de Dali :
    "A única diferença entre eu e os surrealistas é que eu sou surrealista".
    Mas penso que "Vaca de nariz sutil" e "A lua vem da Ásia" são as suas melhores obras; o que não siginifica que "O púlcaro búlgaro" não seja também supimpa!
    Abraços.

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  3. Conheci indicado por uma amiga Otro Mondo (Eva García) e gostei muito.

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