Salvador Dali - O ovo cósmico |
Porque o sangue de Cristo
jorrou sobre os meus olhos,
a minha visão é universal
e tem dimensões que ninguém sabe.
Os milênios passados e os futuros
não me aturdem porque nasço e nascerei,
porque sou uno com todas as criaturas,
com todos os seres, com todas as coisas,
que eu decomponho e absorvo com os sentidos,
e compreendo com a inteligência
transfigurada em Cristo.
Tenho os movimentos alargados.
Sou ubíquo: estou em Deus e na matéria;
sou velhíssimo e apenas nasci ontem,
estou molhado dos limos primitivos,
e ao mesmo tempo ressoo as trombetas finais,
compreendo todas as línguas, todos os gestos, todos os signos,
tenho glóbulos de sangue das raças mais opostas.
Posso enxugar com um simples aceno
o choro de todos os irmãos distantes.
Posso estender sobre todas as cabeças um céu unânime e estrelado.
Chamo todos os mendigos para comer comigo,
e ando sobre as águas como os profetas bíblicos.
Não há escuridão mais para mim.
Opero transfusões de luz nos seres opacos,
posso mutilar-me e reproduzir meus membros como as estrelas-do-mar,
porque creio na ressurreição da carne e creio em Cristo,
e creio na vida eterna, amém.
E, tendo a vida eterna, posso transgredir leis naturais:
a minha passagem é esperada nas estradas,
venho e irei como uma profecia,
sou espontâneo com a intuição e a Fé.
Sou rápido como a resposta do Mestre,
sou inconsútil como a sua túnica,
sou numeroso como a sua Igreja,
tenho os braços abertos como a sua Cruz despedaçada e refeita,
todas as horas, em todas as direções, nos quatro pontos cardeais,
e sobre os ombros A conduzo
através de toda a escuridão do mundo, porque tenho a luz eterna nos olhos.
E tendo a luz eterna nos olhos, sou o maior mágico:
ressuscito na boca dos tigres, sou palhaço, sou alfa e ômega, peixe, cordeiro, comedor de gafanhotos, sou ridículo, sou tentado e perdoado, sou derrubado no chão e glorificado, tenho mantos de púrpura, e de estamenha, sou burríssimo como São Cristóvão, e sapientíssimo como Santo Tomás. E sou louco, louco, inteiramente louco, para sempre, para todos os séculos, louco de Deus, amém!
E, sendo a loucura de Deus, sou a razão das coisas, a ordem e a medida;
sou a balança, a criação, a obediência;
sou o arrependimento, sou a humildade;
sou o autor da paixão e morte de Jesus;
sou a culpa de tudo.
Nada sou.
Miserere mei, Deus, secundum magnam misericordiam tuam!
Um dos pontos altos da poesia mística de Jorge de Lima.
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