Tradução de Lucas Fortunato
Antes de esmagar as “elites” é necessário primeiro compreendê-las, e, para isso, defini-las.
O mundo moderno que, espiritualmente falando, está em plena derrota que tanto odeia, justamente, todo o espiritual, deve restabelecer, se quer recobrar a paz, o equilíbrio entre os dois movimentos de fundo por meio dos quais se manifesta, seja valendo-se da cabeça ou das mãos, uma atividade e um dinamismo idênticos, cuja igualação integra o homem completo.
Assim como existe uma formidável má inteligência, no mundo presente, entre as faculdades opostas do espírito e da matéria, assim mesmo existe uma emulação, ou melhor, uma rivalidade entre o trabalho das mãos e o da cabeça. É inegável que as “elites” não têm lugar na sociedade de nosso tempo. A grande massa humana não se interessa pelos trabalhos do espírito, e não seria exagerado afirmar que se presta a reduzir à fome quem, com um desinteresse que foi melhor reconhecido em outras épocas, faz profissão de entregar-se ao puro trabalho do pensamento.
Mas antes de reduzir os intelectuais à fome, antes de esmagar as “elites” que edificam a glória de uma sociedade, a sociedade deve, pelo menos, exercer um esforço para aproximar-se dessas “elites”, quer dizer, para determiná-las. Um homem eminente com quem me queixava da triste situação que se abate sobre os artistas da França, me contestou:
- O quê quer você? Em nosso mundo, os artistas foram feitos para morrer sobre um monte de palha, quando não sobre a palha dos calabouços.
Repliquei que houve tempos em que se dava aos artistas o lugar que lhes corresponde, isto é, o primeiro, e em que a sociedade tinha, até mais além do que o necessário, com que lhes proporcionar meio de subsistência.
Que o dinheiro tenha se convertido no que é hoje – uma espécie de força maior, e, se se pode dizer assim, uma pedra de toque da vida –, bem, isso é um fato, não uma lei da evidência. E não é porque as coisas sejam assim que se deve resignar-se a aceitá-las como são. Existem demasiadas e muito elevadas razões para intentar uma transformação.
Para quê servem, então, as revoluções, se não para restabelecer o equilíbrio social e para injetar um pouco de justiça na injustiça da vida? No fundo dessa rivalidade, dessa luta em que as forças do espírito e da matéria se opõem, encontra-se um erro de concepção que pertence como coisa própria do mundo moderno: quero dizer que outros séculos a ignoraram.
Se no mundo capitalista moderno, onde o dinheiro está acima de tudo, existe, como não se pode negar, um desprezo característico pelas “elites”, o qual oculta por sua vez o ódio que inspira toda verdadeira superioridade, isso se deve, justamente, a que o mundo moderno atribui às “elites” uma realidade, uma existência que elas não têm.
Os que trabalham com as mãos esquecem que têm cabeça, e os que trabalham com a cabeça, em geral, acreditam-se diminuídos quando têm que trabalhar com as mãos.
Nessas condições, explica-se o desprezo que sente as massas comunistas pelas atividades gratuitas do espírito. O mundo moderno está em plena derrota porque despreza os trabalhos do espírito, e até pode-se afirmar que perdeu o espírito; mas este, por sua vez, tornou-se inútil porque rompeu com a vida. Que as “elites” deixem de crer em sua superioridade, que adquiram uma humildade proveitosa, que voltem o espírito à sua antiga qualidade de órgão, que apresentem os trabalhos da inteligência sob um aspecto vantajosamente material, e como por encanto cessará esta guerra imbecil entre os refinamentos suntuários do espírito e o trabalho das mãos que carece de valor quando não é regido pela lógica da cabeça.
Queira-se ou não, as “elites” são o peso, o contra-peso soberano que permite à vida o manter-se direita.
Os intelectuais ocuparão seu lugar na sociedade quando esta tenha o suficiente entendimento para compreender que existe uma identidade absoluta entre as forças do corpo e as da inteligência, e que o espírito é ao crivo da vida. Não sustento que o espírito seja tão útil como o corpo; sustento que não há nem corpo nem espírito, senão modalidades de uma força e uma ação únicas. E a questão da rivalidade entre ambas modalidades não chega sequer a se delinear.
Toca aos intelectuais empregar sua força espiritual em tarefas úteis que sejam como o sal mesmo da vida e não especulações do espírito, dessas que se chamam desinteressadas e gratuitas, mas que na realidade são tão desinteressadas e tão gratuitas, que não servem a ninguém nem para nada. O que não quer dizer que os intelectuais devam dedicar-se a tarefas operárias, senão que devem compreender, por fim, a utilidade funcional do espírito.
Se o corpo e o espírito são um só movimento, os intelectuais devem voltar seus esforços do lado em que o espírito toca os ritmos da vida enferma, e, como nos tempos em que reinou a grande cultura unitária de onde saíram todas as civilizações, voltar a ser curadores, os terapeutas das altas funções da vida no homem, posto que no organismo desorganizado do homem de hoje é onde se reflete o organismo desordenado do universo.
Masculino, feminino. As sociedades antigas consagraram em termos famosos o eterno antagonismo entre as forças do espírito, que são masculinas, e as forças do corpo ou da matéria, cuja pesada passividade é justamente feminina.
Seria coisa de uma mágica astúcia ressuscitar hoje em dia essas velhas noções sem as quais a vida é incompreensível.
Agora bem, para isso, temos ao alcance da mão um órgão mágico, uma arma que nos permite figurar a vida.
Esta arma de excepcional poder e inesgotável fecundidade é o teatro. Mas a sociedade moderna esqueceu as virtudes terapêuticas do teatro. Faríamos rir se lhe disséssemos que nos tempos antigos o teatro foi considerado um meio excepcional para restabelecer o equilíbrio perdido das forças, e que no aparato do teatro antigo existem músicas e danças de cura.
Tem-se esquecido que o teatro é um ato sagrado que empenha tanto quem o vê como quem o executa, e que a idéia psicológica fundamental do teatro é esta: que um gesto que se vê e que o espírito reconstrói em imagem, vale tanto como um gesto que se faz.
A isso se deve que, como instrumento de revolução não haja nada melhor que o teatro; e por meio dele, por meio desta arma dissolvente e formidável, todo governo revolucionário perspicaz, dirige e assegura sua revolução.
Não há revolução possível sem uma integração das “elites” às massas, as que ganham assim, só por este fato, um elevado tom espiritual.
Com suas raças indígenas primitivas, nas que abundam as músicas e as danças de cura, o México está pronto para entender uma revolução semelhante; e o melhor dessas músicas indígenas de cura espera o momento de ocupar seu lugar entre a massa dos trabalhadores.
PS: Não há motivo, com efeito, para não incorporar a arte popular dos índios à “elite”. Situar no mesmo plano cultural a vida do folclore e as investigações puramente intelectuais dos grandes escritores mexicanos, parece-me que é um meio refinado de acabar com os antagonismos que existem entre a “elite” e a massa, entre a arte popular e a arte burguesa, entre a vida intelectual e a vida instintiva, entre as efusões da mentalidade pura e as harmonias, também intelectuais, da vida orgânica dos índios.
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