She
walks in beauty, like the night
Of cloudless
climes and starry skies
Lord Byron
Por João Antônio Bezerra Neto
†
Capa de O livro de Tânia |
Publicado em 1963, O Livro de Tânia, do poeta potiguar Walflan
de Queiroz [1930-1995], celebra a poesia lírica e amorosa. O tom profundamente
angustiante, que caracterizou as elegias para Irene e Tereza, as musas n’O Tempo da Solidão, o seu livro de
estreia, retorna na mesma proporção nos poemas para Tânia, a sua paixão não
correspondida.
Assim como O Tempo da Solidão, as ilustrações ficaram
a cargo do pintor Dorian Gray, que, também poeta, vale lembrar, ilustrou com
intensidade, ao lado de Newton Navarro, uma geração de escritores potiguares ao
longo das décadas de 1960 e 1970, principalmente. A capa d’O Livro de Tânia reproduz o rosto de uma mulher banhado com um ocre
dourado, num plano à margem, estabelecendo a perfeita comunhão entre o código
visual e o código verbal.
Ao que se sabe, Walflan
de Queiroz foi um homem dado a paixões platônicas, cujo destino desde sempre o levou
à profunda tristeza e ao desamparo, contribuindo para fixar a imagem do poeta
atormentado e solitário, um ser decaído, que compreende o Amor como um fardo.
A sua vida afetiva não
foi estável, devido muito provavelmente aos efeitos devastadores da esquizofrenia,
doença de que fora acometido ainda bastante jovem e que aos poucos acabou por
destruí-lo. Para efeito biográfico, lembramos que Walflan de Queiroz não casou.
Nem teve filhos. Formou-se na década de 1950 pela tradicional Faculdade de
Direito em Recife, mas nem chegou a exercer a profissão. Talvez até tenha
tentado exercê-la. Na juventude, foi marinheiro mercante e ainda experimentou o
silêncio dos claustros. Faleceu aos 65 anos de idade em Natal, cidade onde
morou e publicou seus livros. O que restou do poeta foram os poemas, o seu maior
legado.
Um dos eixos temáticos
de sua obra poética é, portanto, a presença da figura feminina. O poeta Walflan
tinha a tendência para amores não consumados, irrealizáveis, tematizados em
poemas à moda romântica do mal do século. Culto e poliglota, ele lia com fervor,
com obsessão, Shelley, Keats, Poe, assim como também lia Baudelaire, Rimbaud,
Rilke e Hart Crane. A poesia walflaniana elege esse cânone estrangeiro como seu
referencial estético.
Por causa do lirismo predominantemente
platônico, o escritor Rômulo Wanderley, em sua antologia Panorama da Poesia Norte-Rio-Grandense, lançada em 1965, inscreveria
o nome de Walflan de Queiroz sob a auréola dos poetas que herdaram a legítima
influência dos românticos angustiados. Com esses românticos, o poeta Walflan
tem muita afinidade, conforme expressa Wanderley:
A poesia de Walflan de Queiroz revela um
talento excepcional, a serviço de uma profunda e original sensibilidade. É um
moço de talento, cuja poesia expressa uma tortura interior que lembra os
grandes românticos e os grandes sofredores da Literatura Universal.
†
Em O Livro de Tânia, o poeta Walflan nos transmite o que está no âmago
do seu sofrimento: a dor da paixão. A paixão dos agônicos. A dedicatória
impressa no centro da página reflete a visão sofredora dessa paixão: “Eis o teu
livro, Tânia. O mar já não existe. E as rosas que te dei naquela noite de
dezembro, estão tristes. Esperam pela tua ternura. Tocadas, como são, pelo
orvalho e os ventos das manhãs”. Sua mensagem é amarga. Evoca o mar que deixou
de existir. Evoca rosas que foram esquecidas, sem afago. Na página seguinte, a
epígrafe extraída do Gênesis, que relata o episódio da luta de Jacó com um
anjo:
Jacó ficou só: e veio alguém que lutou
com ele até o romper do dia. Vendo que não podia vencê-lo, tocou-lhe aquele
homem na articulação da coxa e esta deslocou-se, enquanto Jacó lutava com ele.
E disse-lhe: “Deixa-me partir, porque a aurora se levanta”. – “Eu não te
deixarei partir, respondeu Jacó, antes que me tenha abençoado”. Ele perguntou-lhe:
“Qual é o teu nome?” – “Jacó” – “Teu nome não será mais Jacó, tornou ele, mas
Israel, porque lutaste com Deus e com os homens e venceste”.
A luta de Jacó serve de
espelho metafórico para o poeta Walflan, em luta consigo mesmo, pois ele está à
procura de um sentido para a sua paixão por Tânia.
Ilustração de Dorian Gray para O livro de Tânia |
A maioria dos poemas n’O Livro de Tânia está distribuída em
quatro partes. A primeira, “Três momentos para Tânia”, onde a epígrafe de Emily
Dickinson diz: “Because my brook is silent / It is the sea”; a segunda, “Poemas
da ausência”, trazendo a epígrafe, em francês, de Rilke: “Tu es en exil, tu
n’as pas de patrie, aucune place ici-bas, n’est la tienne”; “De profundis”, a parte
mística do livro, que tem como epígrafe o salmo de Davi: “Si tu retiens les
fautes, Yahvé, / Seigneur, qui donc subsistera?”; e, por fim, “O sustentáculo
da nuvem”, cuja epígrafe é anunciada pela voz de Rimbaud: “Les nuées s’amassaient
sur la haute mer faite d’une éternité de chaudes larmes”.
No prefácio, o poeta
Walflan de Queiroz escreve sobre a sua obra com a lucidez de quem reconhece a
angústia existencial que cerca o verdadeiro artista, cônscio de sua arte e de
sua criação. Leiamos:
Poesia
e Tentativa
Muita gente ignora que a
poesia seja uma arte temporal. E que, como a música e o canto popular, tem
raízes na imaginação, nas festas do povo, nas baladas e no ditirambo grego.
O primeiro poeta foi
Homero. O primeiro sacerdote, Orfeu. Descendemos de Homero, como descendemos de
Orfeu. O objeto da poesia nem sempre é o mesmo, mas a pureza da intenção, o
prazer superior do espírito, permanece.
Se considero Shakespeare o
mais completo poeta que existiu, foi porque ele traçou com Hamlet, o retrato do
artista. Hamlet foi e será sempre um limite entre o conhecido e o desconhecido,
entre a luz e as trevas. Quem não entender o tipo Hamlet, nada percebe, nada
intui de belo e de trágico que mora no homem.
E Hamlet não gostava de Polonius.
Amava apenas uma mulher de olhos doces e meigos.
Foi com Poe que aprendi
uma definição de poesia. “Criação rítmica da beleza”, assim fala o poeta que
conheceu do anjo e do demônio. E que, por fim, venceu o demônio. [...]
Minha intenção neste livro
de poemas foi única e exclusivamente poética. Qualquer outra interpretação trai
a malícia de quem o imaginou. Uma mulher pode ser um abismo, como também uma
flor da montanha. No meu caso, encontrei um abismo. Mas, somente no abismo
encontra-se a verdade. Os deuses amam a profundidade, não o tumulto, dentro da
gente.
Tirei deste abismo, rosas
azuis. Com elas, faço um ramo dourado e o deponho perto de minha janela.
Pássaros vindos, não sei de que nascentes ou de que montanhas, cantam novas
canções para mim. [...]
Em sua reflexão sobre os
primórdios da Poesia, lembra que, assim como a música e o canto, ela é também
uma arte temporal, destacando Homero, o “primeiro poeta”. De Homero para Orfeu,
o “primeiro sacerdote”, é traçado o legado da Tradição, que expressa Walflan de
Queiroz; depois, a referência a Hamlet, o príncipe revoltado, onde coexistem a
poesia e a loucura, o amor por Ofélia e a morte. Admite também a influência de
Poe para uma definição de poesia como “criação rítmica da beleza”.
Ilustração de Dorian Gray para O livro de Tânia |
Consciente de que a
poesia tem o poder de transcender a realidade, o poeta Walflan deseja evitar
qualquer polêmica passional e faz uma advertência ao leitor desavisado: “Minha
intenção neste livro de poemas foi única e exclusivamente poética. Qualquer
outra interpretação trai a malícia de quem o imaginou”. Sua sensibilidade é de
fato muito grande, pois ele confia em seus sentidos para a transfiguração do sentimento.
Por isso, a mulher que ele canta é uma metáfora simbolizada pela imagem do abismo,
do infinito, ou como também ele próprio diz: “uma flor da montanha”.
O abismo,
especialmente, simboliza a profundidade do sentimento, consubstanciado em
tensões e desejos. E, no poema a seguir, a noção do abismo oferece-nos outro
aspecto, o de natureza mística, pois a imagem da mulher inalcançável provoca no
poeta algum sentimento de religiosa resignação:
ABISMO
Senhor, convertei meu abismo em
redenção,
E mandai vosso anjo erguer a minha alma,
Da profunda tristeza em que se encontra.
Fazei, Senhor, que, nenhum demônio possa
Jamais encontrar em meu corpo alívio
para o seu tormento.
E derramei, vosso óleo e vosso vinho
Por sobre a minha miséria e a minha
desolação.
Num dos primeiros
poemas do seu livro, Walflan de Queiroz descreve a beleza física da sua musa
por meio de uma linguagem idealizada, repleta de comparações. O começo do poema
diz: “Tânia. Teus olhos são doces e brilhantes, cinzentos como a noite. /
Tânia. Teus olhos são grandes e lindos como duas estrelas que se amam”.
Tânia é motivo poético
que extrapola o elemento real, inspirando o poeta a evocar várias musas: “Te
amarei e te louvarei sempre. / Annabel Lee dos meus sonhos, lírio de minha
solidão, / Dá-me o alento para os meus dias, bálsamos para o meu / Sofrimento.
/ Sou como a noite, não sei onde moro”. Nestes versos, compartilha a sua dor com
Poe, lembrando-se da sua heroína Annabel Lee.
Noutro poema, estabelece
um elo comparativo com Ofélia: “Teus olhos cinzentos. Ofélia / Tinha os teus
olhos. Eram como pétalas, gotas / De chuva que preenchiam o meu sonho”. Em “Balada
a Tânia”, clama pela sua amada: “Tânia, Tânia, / Minha é a rosa, / Teu é o
poente, / De sangue e de coral”.
O poema “No Egito,
afinal” é latente o desejo de evasão: “Mulher dos meus sonhos, / Olhos
cinzentos da noite, / Como as flores e as palmeiras do Nilo”. Já no poema
“Ama-me que sou um pássaro”, temos a dualidade entre Vida e Morte: “Ama-me como
um pássaro, como o crepúsculo / Ou como um inquieto rio, como uma tocha, / E
assim então morrerei”.
A imagem do crepúsculo sugere
introspecção no poeta:
A
TÂNIA, NUMA TARDE DE CREPÚSCULO MÍSTICO
Esta tarde meus olhos estão cansados de
te esperar
E de te desejar na tranquila paisagem do
porto,
Onde os barcos balançam mansamente sob o
crepúsculo.
Esta tarde eu te ouço no murmúrio das
águas, no voo
Da gaivota, quando desfalece em mim a
visão da retirada ilha.
Esta tarde meu coração adormece
docemente em tuas mãos
E penso no silêncio das estrelas e dos
teus olhos.
O discurso poético repousa
nos elementos constituintes da transitoriedade: os barcos, o crepúsculo que se
desfalece no horizonte, o murmúrio do mar, a gaivota no céu, a ilha. Tudo é
fugaz. É dentro dessa fugacidade temporal que o eu lírico vivencia e anseia por
sua paixão. A clássica metáfora romântica do poema está no final: “Esta tarde
meu coração adormece docemente em tuas mãos / E penso no silêncio das estrelas
e dos teus olhos”.
Noutro
poema, o poeta recorda as virtudes do silêncio:
CANÇÃO
PARA TÂNIA
Tânia, eu não sou o vento
E nem o silêncio da estrela.
Eu sou o silêncio, a sombra do anjo.
Eu não sou o anjo.
Tânia, eu não sou a casa branca da
floresta.
Eu sou apenas um pássaro boiando sobre
as espumas
Do mar. Não sou a vaga. Não sou o ar.
Eu sou um rio, Tânia. Um rio impassível.
Mas, posso ser também, Tânia, uma rosa
branca.
Uma rosa branca, para morrer contigo.
O silêncio, a “sombra
do anjo”, a estrela, o pássaro, o mar, o rio, a rosa, enfim, metáforas e
símbolos que retratam a dimensão lírica, existencial. A rosa branca é símbolo
da pureza, da inocência, e com ela o eu lírico deseja demonstrar a fatalidade
da sua paixão. “Uma rosa branca, para morrer contigo”.
Assim como no poema
anterior, o poeta Walflan continua a sua descida metafísica aos recantos
sombrios do ser. Nesse sentido, a sua postura é cada vez mais intimista,
voltada para o inconsciente, para o lado noturno:
NOTURNO
PARA TÂNIA
Se, durante a noite, não sentires,
Cair sobre a tua face, uma lágrima,
Não, não sou eu.
Se, durante a noite, não ouvires,
O grito do pássaro pousando em tuas mãos,
Não, não sou eu.
Mas, se caminhares, pelo invisível,
E vires então o anjo inclinar-se sobre
ti,
Sou eu, Tânia, sou eu.
Ilustração de Dorian Gray para O livro de Tânia |
O símbolo da noite é
recorrente na sua poesia. Vimos, por exemplo, que a noite está presente nos
olhos da Amada (“cinzentos como a noite”), noutro verso, o próprio eu lírico
afirma: “Sou como a noite, não sei onde moro”. Além da noite, a imagem mística
do anjo.
O último poema chama-se
“Eurídice”, uma belíssima prosa poética plasmada numa linguagem órfica e
cristã, que sintetiza o traço evocativo, desde sempre regido por atributos que
singularizam a figura feminina em seu livro. Eurídice foi o grande amor de
Orfeu, herói da Trácia, mito popular presente no imaginário da cultura
ocidental.
O Livro de Tânia é um dos livros essenciais à poesia
norte-rio-grandense. Um livro cheio de riqueza e de referenciais poéticos. Um
livro que privilegia a temática amorosa corajosamente. Walflan de Queiroz, à
beira do seu Abismo existencial, consagra-se de uma vez por todas como um poeta
marcado pela Angústia e pela Paixão. Um poeta fiel aos seus sentimentos os
quais soube transfigurá-los para suportar o mundo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário