dedicado a Antonio Eduardo de Oliveira
Por João Antônio Bezerra Neto
O poeta potiguar Walflan de Queiroz [1930-1995] publicou o seu primeiro livro, O Tempo da Solidão, em 1960, com ilustrações do seu amigo Dorian Gray Caldas. Tinha praticamente 30 anos de idade. É contemporâneo de uma das gerações que mais brilharam no cenário literário potiguar, uma geração que agrupava uma plêiade de escritores, tais como Newton Navarro, Berilo Wanderley, Celso da Silveira, Zila Mamede, Luís Carlos Guimarães, Sanderson Negreiros, Myriam Coeli.
Antes de lançar o seu livro de poesias, Walflan de Queiroz havia sido marinheiro mercante, nos dias de sua juventude, e depois de ter o diploma de Bacharel, pela tradicional Faculdade de Direito do Recife, experimentou uma vida monástica, mas não se adaptou, desiludindo-se ainda mais com o mundo. Era uma dessas figuras de natureza excêntrica, que se entregou a sua poesia de corpo e alma. Tomado pela loucura, terminaria os seus dias enclausurado numa clínica para transtornos psíquicos.
A sua estreia, em livro, era esperada no meio intelectual da cidade do Natal, visto que o poeta Walflan já vinha publicando os seus poemas de forma dispersa nos jornais e nos suplementos literários da época. Editado pelo grupo da Revista Cactus, O Tempo da Solidão foi bem acolhido. Na breve nota intitulada “Ao leitor”, o poeta diz a que veio:
Este pequeno livro de poemas é produto de uma tentativa do autor para escapar ao profundo sentimento de solidão em que se sentiu durante um período da vida. Distante do seu ser querido, de sua Musa, não tem mais esperanças de revê-la.
Espero que estes poemas, escritos com amargura e saudade, possam um dia chegar ao coração deste ser inocente, que foi a razão do seu canto e da sua solidão.
Um prefácio a um livro de versos, deve antes de tudo, vir com aquele “leite de ternura humana”, de que falou Keats [1].
O autor viveu experiências dramáticas em sua existência, sentiu o fel da vida em toda a sua intensidade. Mas acredita na mensagem do Cristo e na Beleza permanente que há nas coisas. [...]
Na mesma nota, o poeta reflete acerca da sua compreensão poética: “A poesia, como expressão da imaginação, como linguagem pura, silêncio e aventura espiritual, não morre. Verlaine, Rimbaud, Keats – são eternos”. E acrescenta do alto da sua ansiedade para finalizar: “Indaguei o meu tempo interior, segui uma estrela. Outrora, conta o Evangelho, os magos do Oriente seguiram uma estrela, e encontraram o Rei envolvido em pobres palhas de uma manjedoura. Espero que comigo aconteça o mesmo”.
O Tempo da Solidão é agraciado com um belo texto do escritor Luís da Câmara Cascudo, que se recorda de um Walflan de Queiroz marinheiro e depois Poeta.
Depoimento, antiprefácio
Life is real! Life is earnest!
And the grave is not it’s goal;
Dust thou art, to dust returnest,
Was no spoken of the soul.
Longfellow
Conheci Walflan de Queiroz antes e depois de sua aventura no mar, um mar amargo e sonoro que o impregnou de sal e de melodias distantes e nostálgicas.
Voltando, conta sua história, história da viagem atormentada, em poemas, como Ulisses viveu a busca de Ítaca ou Jasão o regresso com os argonautas. O sentido que encontra nas coisas vistas e sofridas é uma divisa de John Keats: – “A thing of beauty is a joy for ever!”. A voz íntima da criação ressoa em verso claro: –
“Verei para sempre, em todas as coisas, o princípio da Beleza”. Este “O TEMPO DA SOLIDÃO”, solidão cantante do Oceano, o relatório dolorido das saudades e das penas, atravessadas como muro de flamas e de lanças, não o imobilizou no desespero e na amargura indefinida, infinita e vária, como num céu sem estrelas e sem anjos. [...]
Vi o Poeta seteando os demônios lentos, vivendo o Amor sem pecado, pondo o coração em cima da cabeça esmagada da serpente, sob a meia lua de prata, aos pés da Virgem Imortal. [...]
Os escritores Edgar Barbosa e Veríssimo de Melo, com eloquente entusiasmo, saudaram também o livro. Para Edgar Barbosa, o livro do poeta Walflan representa “um canto do homem vivido em rudes experiências e que, entretanto, não desesperou”. Por sua vez, Veríssimo de Melo vislumbra o poeta do mar como um personagem dos contos de Jack London, tendo realizado “o sonho mais acariciado de sua juventude, o maior sonho de todos os jovens do mundo: viajar!”
Desenho de Dorian Gray para a edição de O Tempo da Solidão
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De fato, o mar e o tema da viagem estão de alguma forma transfigurados nos seus versos, nos seus poemas. “Um navio inútil vem da minha infância e me chama para uma viagem cujo rumo ignoro”. Já no poema “Chamado do Mar”, o eu lírico se questiona: “Barco, barco que me chamas, / Por que não atendo ao teu apelo?”
A força literária de O Tempo da Solidão está na ressonância da tradição literária do ocidente presente nos poemas. A começar pelas epígrafes do livro, que começam com “Ce ne peut être que la fin du monde, en avançant”, de Jean Arthur Rimbaud. Em seguida, noutra página, os versos do poema “To One in Paradise”, de Edgar Allan Poe, que o poeta Walflan apaixonadamente oferece a Irene Porcel, - “Thou wast that all to me, / For whitch my soul did pine / A green isle and the sea, love, / A fountain and a shrine, / All wrethed with fruits and flowers, / And all the flowers were mine”.
As influências estrangeiras – fruto de suas leituras e do fato de ser poliglota – desde sempre caracterizam o espírito poético de Walflan de Queiroz, um devoto obsessivo da poesia romântica inglesa e da poesia simbolista com suas velhas raízes deitadas na França. A poesia de Walflan dialoga com a tradição, com o passado. É, portanto, uma poesia que presta tributos a vultos da dimensão universal de um Poe, de um John Keats, de um Hölderlin, de um Rimbaud e Hart Crane. Uma “angústia da influência” percorre nas veias do poeta, no seu sangue.
Desenho de Dorian Gray para a edição de O Tempo da Solidão
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É uma poesia feita de sofrimento, de tristeza, de inclinações metafísicas, de paixões platônicas à maneira dos românticos, como neste poema, cujos versos iniciais dizem: “Ah! Minha alma triste te implora perdão. / Nunca desejei de ti senão preces, ternura. / Teus olhos que se encontravam com os meus, / Eram como um farol me guiando no mar cheio de tormentas de minha vida”.
Nas “Elegia para Irene” e “Elegia para Tereza”, o poeta Walflan de Queiroz, dado a paixões impossíveis, expressa o que há de melhor no seu romantismo. No poema “Angústia”, dedicado ao grande cronista e boêmio Berilo Wanderley, justifica o seu sentimento: “O que é romântico não pode desaparecer da vida nem da morte”.
No poema “Para Keats”, o poeta escreveu com dor existencial: “Eu também tenho que morar com a solidão. / Mesmo se eu amo a montanha, o mar e o penhasco, / Ela é minha amante e não me abandona jamais. / Somos como duas crianças sempre fiéis uma a outra. / Somos sinceros e sempre estamos brincando. / Tudo para mim, é distante e impossível. / Distante o meu amor, distante a vida que desejo”.
Walflan de Queiroz tem o seu próprio modo de exprimir a sensação poética, de transmitir a sua emoção crivada pelo lirismo sofredor e dilacerante, como neste verso: “Permiti-me chorar sobre o teu túmulo, Rimbaud”.
Desenho de Dorian Gray para a edição de O Tempo da Solidão
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O Tempo da Solidão carrega também a intensidade dos apelos de timbre místico e religioso do poeta. No poema “Prece”, o eu lírico grita em direção ao Absoluto: “Senhor! Quero esta estrela que me olha com olhos fitos e constantes!”. Noutro poema, intitulado “Maria”, vislumbramos a sua religiosidade cristã, feita de pureza confessional: “Ah! O coração de Maria! / Consoladora dos aflitos, / Fonte de cristal, / Tranquilo trono de Davi”. Em uma outra “Prece”, evoca a morte: “Peço à Nossa Senhora da Consolação, / Que me olha com seus olhos meigos e santos, / Que me dê uma boa morte. / Quero somente no meu túmulo, / Umas violetas de Keats, / Umas rosas e uma cruz”.
O poema “Autobiografia”, um dos melhores d’O Tempo da Solidão, é digno de ser integralmente reproduzido em qualquer antologia que preze pela qualidade do texto literário:
AUTOBIOGRAFIA
Nasci sob o signo de São Bento José Labre.
Pedi esmola na porta de Notre Dame,
E fui encontrado morto numa rua de Madri.
O primeiro hino foi meu, o primeiro canto,
Que comoveu a alma de Francesca de Rímini.
Fui monge, amei a Virgem.
Fui marinheiro, estive no Oriente.
Mais tarde, pertenci ao grupo dos poetas malditos,
E escrevi o meu último poema para uma menina espanhola.
(O Tempo da Solidão, p. 35)
O poema expressa a imaginação criadora do seu autor. O seu lirismo de teor narrativo sinaliza os temas da poesia sentida e imaginada. Destacam-se referências religiosas e literárias. A fuga do real, a evasão, o escapismo romântico dão o tom da sua mensagem vivida em verso.
O Tempo da Solidão não deixa dúvida alguma quanto à qualidade excepcional do poeta Walflan de Queiroz e da sua poesia. É um livro de um poeta de Verdade. Um poeta que se foi, mas que desejou sempre ser compreendido na intensidade e riqueza de seus poemas.
[1] Walflan de Queiroz atribui a frase “leite de ternura humana” ao poeta inglês John Keats. No entanto, essa expressão é shakespeariana, do bardo imortal de Stratford-upon-Avon. A frase pode ser encontrada na sua obra Macbeth.